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título: cortejo
data de publicação: 11/09/2025
quadro: luz acesa
hashtag: #cortejo
personagens: hélio

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Shhhh… Luz Acesa, história de dar medo. [vinheta]


Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei pra um Luz Acesa. E hoje eu vou contar para vocês a história do Hélio. — Essa história aconteceu na pandemia e foi um divisor de águas aí na vida do Hélio. — Então vamos lá, vamos de história.

[trilha]


Hélio sempre foi um cara que gostou de estudar muito — ele sempre teve esse lado de gostar de estudar muito — e na família dele tem muitos policiais militares e o Hélio sempre quis seguir carreira, como o pai dele, como o irmão dele, como o avô dele… — Então ele sempre quis entrar na polícia. — E não é fácil entrar na polícia, são muitos testes, testes físicos, enfim, é todo um processo para você conseguir ingressar na Polícia Militar. E o Hélio tinha esse lado que talvez ele quisesse seguir a carreira do Direito, ele se formou e não tirou a OAB para poder estudar para entrar na Polícia Militar. — Ele não queria a Polícia Civil, ele queria a Polícia Militar. — Quando foi ali no começo da pandemia, ele foi aprovado e tinha mais umas coisas para fazer para ele ingressar ali na polícia e realmente começar a trabalhar, enfim… — Você é inserido primeiro em algumas coisas e depois que você vai para a rua, enfim, o Hélio estava nesse processo. —

Hélio ali com seus 24 anos, limite de idade para entrar na polícia, pandemia chegou, todo mundo em casa. — Mesmo com pandemia, eles tinham que acelerar as coisas porque provavelmente ia precisar de mais gente, né? Na rua, enfim… — Ele morava com os pais e eram só os três ali naquela casa e o Hélio resolveu alugar uma casa perto do batalhão que ele sabia que ia ser para onde ele ia ser destinado ali. — Perto, assim, sei lá, uns três, quatro quarteirões assim do batalhão, dava pra ele ir a pé. — Acontece que esse batalhão era perto num distrito que tinha um cemitério e a casa que o Hélio alugou era de frente ao muro onde acabava o cemitério. Então, acabava o cemitério, tinha uma rua e tinham várias casas de frente para aquele fundão do cemitério.

Todo mundo achava que a pandemia ia durar dois, três meses — a gente estava ainda naquela época, né? —, então ele estava muito focado em terminar ali as coisas que ele tinha que terminar para poder já começar o trabalho na polícia. Fez a mudança dele, tudo muito restritivo ali, um amigo dele que também tinha feito as coisinhas de polícia que foi ajudar, e aí eles fizeram a mudança… O Hélio não tinha muitos coisa. Primeira noite, o Hélio dormiu bem, tava cansadasso, no outro dia ele não tinha nenhuma atribuição que ele tinha que fazer por conta das coisas da polícia, então ele ficou por ali, ajeitando as coisas dele, foi caindo a tarde ali, início da noite, comeu ali um Pôneiojo, conseguiu conectar a televisão dele, assistiu um pouco de TV e falou: “Bom, vou dormir”. 

Quando foi ali umas onze horas da noite, o Hélio escutou como se tivesse várias vozes, muitas vozes conversando e meio que parecia um culto de igreja, onde alguns estavam exaltados, outros choravam, enfim. E aí o Hélio falou: “Eu não acredito que eu me mudei para um lugar perto de igreja de crente. Não estou acreditando nisso. E outra, a gente tem as restrições sanitárias, como que essa galera se reuniu?”. Pegou no sono, dormiu… No dia seguinte de novo… Da cama dele, ele ouvia muito… Na terceira noite, o Hélio falou: “Eu vou lá… Eu não sou polícia ainda, mas eu sou um cidadão, eu vou lá… Vou botar minha máscara e vou lá”. O quarto dele era em cima e ele abriu a janela para olhar, quando ele olhou, ele viu que as pessoas estavam reunidas dentro do cemitério. — Você vai lá, Hélio? Por que é que você vai lá, Hélio? —

E o Hélio ficou mais revoltado ainda, porque o cemitério tem um horário, aquelas pessoas… Como é que elas entraram no cemitério àquela hora? Hélio muito bravo, jovem, né? Muito jovem também, trocou de roupa, pôs a máscara e desceu. Hélio tinha que dar a volta, porque ele morava nos fundos do cemitério, de frente tinha a rua e já era o muro do cemitério, ele tinha que dar a volta toda naquele muro e ir lá na frente, no portão principal do cemitério, que não tinha vigia, não tinha nada, mas ficava preso com uma corrente. Quando o Hélio chegou lá, ele viu que a corrente estava no portão, mas sabe quando você bota uma corrente muito larga e fica um espaço? Dava pra ele entrar por aquele espaço e o Hélio entrou naquele cemitério bravo, falou: “Não é possível que as pessoas estão se reunindo aqui…”, já estava começando ali um protocolo para os enterros… — Quer dizer, não podia nem velório mais. —

A intenção dele era entrar mais ou menos ali no meio daquela multidão e falar: “Galera, não dá pra fazer isso e nã nã nã, dar uma chamada, dar uma bronca” e assim ele fez… Em vez de ele cutucar uma das pessoas, ele foi empurrando e entrou naquele meio,  porque todas estavam olhando para o mesmo lado e um barulho, umas chorando, outras bravas, ele não consegue lembrar direito as palavras, mas parecia que era um culto que as pessoas estavam reunidas. E, quando ele se virou para falar ali de frente, ele não foi até lá na frente, então ele não viu as pessoas viradas para a multidão, ele só viu a multidão e entrou ali no meio…. Ele falou: “Andréia, as pessoas elas eram cadavéricas, assim, elas eram caveiras… E eu não conseguia acreditar naquilo, por quê? Porque eu fui esbarrando nas pessoas e pedi licença, elas não eram de fumaça… Elas tinham corpo, mas elas estavam apodrecidas, com cara de caveira, algumas com buraco no olho, enfim… Onde era o olho só estava o buraco”

E quando ele fez um “Ei” e ele chamou a atenção daquela galera… E, conforme o Hélio chamou a atenção daquelas pessoas — algumas eram esqueleto, outras eram apodrecidas, caindo pedaços de pele realmente —, começaram a botar a mão no Hélio… Elas não bateram no Hélio, mas cada pessoa — “pessoa”, sei lá o que era aquilo —, cada criatura que botava a mão nele, cada cadáver que botava a mão no Hélio, ele sentia como se ele tivesse levado um soco e ele foi se sentindo fraco, fraco… E aí o Hélio foi abaixando no chão e fez como… Sabe quando você faz bolinha, assim? Que você agacha e faz bolinha? Ele explicou lá que, sei lá, é um movimento para você se defender de soco, essas coisas, foi isso que ele fez, que lembrou do treinamento dele, fez e e continuava sentindo as pessoas tocando nele. E, de repente, essas pessoas começaram a andar… E o Hélio não sabe como ele foi arrastado por aquelas pessoas, ele não sabia para onde ele estava indo e o Hélio se ligou que ele estava num cortejo, um cortejo de pessoas mortas.

Aquele cortejo andou por todo o cemitério, rua por rua do cemitério e, aos poucos, foi diminuindo o número de cadáveres. E o Hélio, as vezes que ele olhava, ele via essas almas ou sei lá o que seja, voltando para a sepultura. Então parecia que eles se reuniam e depois eles faziam um cortejo dentro do cemitério e cada um voltava para o seu jazigo, para a sua sepultura… E aí, quando já tinha umas 15 almas — se é que eram almas, sei lá, porque ele falou que ele foi carregado, ele foi carregado… Ele se sentiu arrastado e ele estava muito fraco já —, eles fizeram um círculo em volta do Hélio e a sensação física que ele tinha era como se ele tivesse sendo esfaqueado. Além dele estar apavorado, doeu muito. E uma daquelas caveiras, que aí era uma caveira, tava de roupa, mas era uma caveira, veio bem perto dele, botou a mão no ombro dele e quando essa caveira botou a mão no ombro do Hélio, ele viu muita coisa horrível, muita coisa ruim que ele não quis compartilhar comigo o que ele viu…

Ele não sabe como ele voltou pra casa, mas ele acordou ali na garagem dele — do lado de dentro do sobrado, ali na garagem — todo sujo. Com marca realmente no tênis dele de arrastado, sabe? Ele foi muito arrastado. Todo sujo, todo dolorido, com todas as imagens que aquela caveira passou para ele — eu falei lá no começo que era a idade limite para o Hélio entrar na polícia, não era a idade limite da Polícia Militar que não tem isso, você pode fazer concurso público com quantos anos for, eu não sei se na polícia tem uma idade máxima, mas a idade mínima da família dele, eles tinha uma tradição que com aquela idade todos ingressaram na polícia, então era a idade da tradição da família dele e, naquele minuto, o Hélio tomou uma decisão de que ele ia quebrar essa tradição de entrar na Polícia Militar.

Foi muito difícil ele comunicar isso pros pais, enfim, a família dele com muitos policiais militares e ele falou: “Não, eu vou para o Direito, eu vou me dedicar a minha profissão de advogado mesmo”, tirou a a OAB e foi para a área tributária, nem quis, enfim, nada nem a ver com muita gente, assim… E aí, nesse dia, ele ficou muito mal, porque além de ter certeza dessa decisão que ele tomou, ele continuava ouvindo o cortejo. Ele continuava ouvindo aquelas almas que se encontravam no cemitério e foi dando uma vontade no Hélio de morrer.  —  Não de tirar a própria vida, entendeu? Tem muita diferença, né? Quando a gente fala em: “Ah, a pessoa quer tirar a própria vida” e “a pessoa ter vontade de morrer”, são duas coisas diferentes. — Parecia que ele era chamado para voltar ao cemitério. Ele já tinha dado aquela notícia para a família que ele não ia ser mais policial militar, já estava todo mundo muito chateado e ele pediu para os pais para voltar para casa, porque assim, nem fazia mais sentido ele ficar mais naquela casa que ele tinha ido para lá para ficar perto do batalhão e ele falou: “Não, eu vou pagar a multa, enfim, vou sair”. — Teve até uma negociação porque pandemia, estava todo mundo dando uma brecha tal. —

Ele voltou para casa e o Hélio não me contou e não contou para ninguém o que ele viu, eu ainda especulei e falei: “Você viu o seu futuro se você fosse policial militar?” e a resposta do Hélio para mim foi: “Andréia, prefiro não responder isso”. Seja lá o que o Hélio viu, fez com que ele desistisse da carreira de policial militar. — No limite da idade da tradição da família dele de ingressar na Polícia Militar e seguir outra carreira. — A gente não vai saber porque Hélio disse que é uma coisa que não, que ele vai levar para o túmulo dele. Ele me falou: “Andréia, eu não sei se existe um mundo além daqui, mas o que eu vi foram seres que não são mais daqui, espíritos, sei lá, mas eles tinham… Eles tinham carne, eu conseguia, eu esbarrei neles, eu empurrei eles para passar. Então eles eram sólidos, mas eles não eram desse mundo, então eu não sei o que é aquilo. Eu vi eles voltando, entrando no chão, entrando nas pedras, nas lápides das suas sepulturas. E aí eu fiquei sem entender mais ainda, por que como que uma pessoa que tem matéria consegue entrar no chão sem cavar, entendeu? Consegue entrar numa lápide? Consegue entrar num jazigo que é só uma tampa no chão? Então não era humano, mas também não era só espírito… Era uma coisa intermediária que mudou a minha vida, mudou o meu pensamento em diversas coisas e me fez jamais empunhar uma arma ou ir atrás de qualquer coisa nesse sentido”.

O que aquela caveira — que ele falou que não era boa, não foi um aviso bom — mostrou pro Hélio só ele sabe e ele diz que ele vai levar para a sepultura. — E para vocês terem uma ideia, o Hélio ele não se casou, ele não quer se casar, isso também ele decidiu naquele dia e ele não quer ter filhos. — E eu falei: “Mas tudo isso pelo que aconteceu com você no cemitério ou por que, sei lá, outros pensamentos da sua vida?”, ele falou: “Não, Andréia, minha vida se resume a antes e depois daquele dia no cemitério” e ele é um rapaz novo, ele é um rapaz novo… Tem quantos anos a pandemia? Quatro? Ele tinha vinte e pouquinho, está com 28, sei lá… Ele é um rapaz novo. E já tem aí essa carga que não vai contar para ninguém. E eu fiz o meu papel, porque eu sei que vocês iam me perguntar muita coisa, eu falei: “Mas e aí se você falar para alguém o que te mostraram, vai prejudicar as pessoas?”, ele falou: “Andréia, eu não posso revelar o que eu ouvi, mas não são coisas boas e são coisas que fizeram eu resolver mudar de carreira, coisas relativas a mim”. 

Não é assim alguma vidência do mundo, não, coisas relativas a ele mesmo. A história vai só até aqui, porque é só até onde o Hélio quer compartilhar com a gente. E o objetivo dele era dizer que sim, que ele, a pessoa mais cética do mundo, presenciou, passou por isso… Tanto que ele não tinha medo que, em nenhum momento, quando ele viu uma aglomeração dentro do cemitério, ele não pensou que não fosse pessoas vivas, né? Porque ele não tinha medo, não acreditava e quando ele viu aqueles rostos cadavéricos e com pele caindo, buraco no lugar dos olhos, enfim… E o Hélio falou uma coisa para mim, ele falou: “Andréia, do mesmo jeito que aconteceu comigo, pode acontecer com qualquer pessoa… Qualquer pessoa. Eu agora tenho a consciência de que existe um mundo além desse mundo aqui, se é um mundo paralelo que está aqui dentro, onde os espíritos e esses meio matéria meio espírito estão vagando, é isso que existe então, porque foi isso que eu vi. E eu vi… Eu não bebo, eu não fumo, não uso nenhum tipo de droga, eu estava acordado, eu vesti, troquei de roupa e a minha roupa ficou imunda, rasgada, eu fui arrastado, eu fui machucado e eu fui exposto a visões que eu jamais gostaria de ter visto e que eu acho que ninguém merece ver. Então, minha história acaba aqui, é só o que eu tenho para te contar e que eu queria que as pessoas soubessem. Todo cuidado é pouco, que a gente não tem que tomar cuidado só com os vivos, mas com os mortos também”.

Perguntei também para ele se ele achou que algum momento aqueles espíritos eram bons, ele disse que não, que a dor que ele sentia ali era como se os espíritos estivessem tirando coisa dele, roubando coisa dele, querendo também que ele morresse. Essa é a sensação. Não foi nada bom. Todos os dias que ele ficou lá depois, até fazer a mudança e tal, ele ouvia esse cortejo pelo cemitério. — Deus me livre, hein? Nem de cemitério eu gosto… E agora, como que você me passa perto de um muro? Coragem, né? — O que vocês acham?

[trilha]


Assinante 1: Oi, nãoinviabilizers, aqui é a Samy de Curitiba. O que será que o Hélio viu, hein? Será que, de repente, ele viu que, mesmo que ele pulasse essa tradição de entrar pra polícia, se ele tivesse um filho homem, esse filho fosse seguir essa tradição por influência de algum parente? E as coisas fossem acabar ruins do mesmo jeito e por isso ele tomou essa decisão também de não ter filhos? Se foi isso, eu acho que você pode também interpretar essas visões ruins como talvez um livramento pra você não seguir essa profissão, porque talvez algo muito ruim acontecesse com você também. Às vezes, não a visão necessariamente que você teve, mas algo negativo que fosse desencadear um monte de outras coisas ruins com a sua família, as pessoas que você ama, né? Tenta pensar por esse lado, eu espero que você fique bem, eu sinto muitíssimo que você tenha passado por tudo isso. E, se você puder, procura terapia, porque na medida do possível, é importante você falar sobre isso com alguém e tentar se desvencilhar desse trauma, né? Fica bem, espero que dê tudo certo pra você.

Assinante 2: Oi, nãoinviabilizers, aqui é a Júlia de Goiânia. Geralmente, as interações que a gente tem com essas pessoas do outro mundo, né? Do mundo espiritual, são através do perispírito. Então, a gente tem a matéria sensível do espírito e ela tá ligada ao nosso corpo físico pelo perispírito, então todas as interações dos espíritos conosco, as incorporações, os fenômenos físicos, essa coisa de empurrar, de você sentir o espírito, não é que ele é sólido, né? Matéria bruta como nós, mas ele é matéria sensível que interage com o perispírito e o perispírito transfere essas sensações pra gente. E o Hélio aí é uma pessoa com muita mediunidade, aconselho que procure um centro que trabalhe essas questões e que também veja o lado bom da espiritualidade, porque tem muita coisa boa pra se explorar. Terapia, um beijo e um abraço pra todo mundo aí.


[trilha]


Déia Freitas:  Um beijo, sejam gentis com o Hélio e eu volto em breve.


[vinheta] Quer sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Luz Acesa é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]