Skip to main content

título: sorte
data de publicação: 31/08/2020
quadro: amor nas redes
hashtag: #sorte
personagens: josé roberto e dona josefa

TRANSCRIÇÃO


[vinheta] Amor nas Redes, sua história contada aqui. [vinheta]

Déia Freitas: Bom, hoje é uma história de amor muito bonita, um amor profundo, um amor maior. A história de hoje é a história do José Roberto, ele quem me escreveu, e a história da Dona Josefa, mãe dele. É uma história tão bonita que eu já fico emocionada só de começar, mas vamos que vamos. 

Bom, o José Roberto nasceu no Rio de Janeiro e, quando ele tinha 11 meses, ele foi para um abrigo de menores. A mãe dele desapareceu no mundo e ele foi encaminhado para um abrigo. Hoje ele tem 30 anos e ele passou os primeiros 12 anos dele abrigado, em um abrigo de menores. Aí a gente pensa assim “Mas ele era um bebezinho, né, bebezinho é mais fácil de ter adotante, né?”, mas no caso dele não foi, o tempo foi passando, ele via as crianças menores todas sendo adotadas e ele ia ficando lá. 

Quando ele tinha lá pelos seus 10 anos, uma senhora, já senhora, chamada Josefa foi contratada para ser a cozinheira do abrigo. E, assim, era um abrigo público, então eles tinham restrições de tudo, as crianças não passavam fome, mas eles não tinham uma variedade de coisas, assim, novas para comer. E a Dona Josefa trabalhava lá duas vezes na semana e os outros dias, outros três dias, ela trabalhava como cozinheira, banqueteira, assim de lugares chiques e tal. A Dona Josefa não era a doceira, ela fazia os pratos salgados e, normalmente nessas festas assim mais ricas, o pessoal acaba levando até, né, hoje em dia tem os chefes, mas naquela época os cozinheiros, porque muita comida você tem um preparo na hora e tal e ela ia, né, nessas festas, mais sofisticadas. 

O pouco que eu sei sobre Dona Josefa já amo, né? Ela tocava sanfona, — Pensa, quem que toca Sanfona, gente? — precisa ter muita habilidade para tocar sanfona, parece um negócio super difícil, mas ela tocava sanfona. E nessas festas, ela levava o case da sanfona, a capa, né, aquela capinha dura, enorme, vazia. E ela fingia que ela depois de lá ia tocar, ou antes de lá ela tinha tocado. Por quê? O quê que Dona Josefa fazia? Ela roubava doces da festa, [risos] e enchia lá o case da sanfona de doce e levava para as crianças do abrigo — Fala se não é maravilhoso?

Então, o Zé Roberto assim que conheceu Dona Josefa ficou encantado, né? Porque era uma senhora toda comunicativa e felizinha, sabe? Trazia coisas que eles nunca, as crianças nunca tinham comido, doces maravilhosos, bolos, tudo que ela enfiava no case [risos] da sanfona dela. E, na época, como eu disse, as crianças vinham e iam, e o Zé Roberto ia ficando. Então tinha época no abrigo que tinham crianças muito pequenininhas, bebezinhas, e só ele maior assim, então ele não tinha muito com quem conversar, às vezes, só ele aproveitava os doces que ela levava e eles foram criando assim um vínculo maior, né? Uma amizade. 

E tudo no abrigo era meio que coletivo, então os brinquedos, eles dividiam brinquedos… Aniversário eles comemoravam os aniversários por mês, então tinham os aniversariantes de Janeiro, aí era uma festa só para todos de Janeiro, uma festa só para todas as crianças de Fevereiro, e assim ia. E estava chegando o aniversário de 12 anos do Zé Roberto, e ele fez um pedido especial para Dona Josefa, ele pediu para ela um pedaço de bolo, né? E perguntou se ela poderia colocar — Ai, gente, eu tô chorando, [voz embargada de emoção] é, desculpa, é — um fósforo em cima do pedaço de bolo para cantar Parabéns, ele queria pela primeira vez na vida ter uma, assim, uma festa, um gesto só dele de aniversário. 

Então, ele queria pegar um desses pedaços de bolo que a Dona Josefa roubava das festas, colocar um fósforo em cima e que ela cantasse Parabéns só para ele, que ele queria ter um Parabéns que fosse só dele. A Dona Josefa atendeu o pedido dele, né? Fez, colocou um fósforo, era só o que eles tinham, não tinha vela, não tinha nada para pôr em cima do pedaço de bolo… E cantou Parabéns. Aí ela cantou Parabéns, deu um abraço nele, deu um beijo nele, e ele viu que ela foi pra um outro cômodo lá do abrigo e estava chorando.

E aí ele ficou sem entender se aquilo que ele fez, que ele pediu, se era errado — Provavelmente, Dona Josefa estava como eu, né? Que tô que nem uma idiota aqui, tentando falar e não chorar e ela, lógico, deve ter se emocionado, — só que isso mudou tudo na vida do Zé Roberto e na vida da Dona Josefa [voz começou a falhar] — Nossa, Deus me livre, deixa eu me recompor aqui, porque meu Deus, né, Dona Josefa maravilhosa, mulher que rouba doce de festa de rico já é minha heroína. E naquele momento, depois ela contou para ele, depois de alguns anos, ela decidiu que ela ia adotar o Zé Roberto. Ela já é uma senhora de 50 e poucos anos e ele um menino de 12.

E o coração dela falou: “Não, ele tem que ser meu filho. Eu já considero ele como um filho, mas ele precisa ser meu filho”, e a Dona Josefa nunca teve filho, nunca casou, então ela não sabia bem, né, os trâmites se ela ia conseguir por não ter um marido, né? Eram outras épocas. Aí a Dona Josefa não teve coragem de chegar na diretora lá, na responsável e foi conversar com uma das monitoras que era uma moça muito gente boa, uma pedagoga, e ela falou: “É isso mesmo que a senhora quer? A senhora quer adotar o Zé Roberto?”, ela falou: “Eu quero, mas eu não sei como, né, eu não sei se eu posso”, ela falou: “Não, pode. A gente vai correr atrás disso”. E aí eles começaram a correr atrás disso, sondaram também o Zé Roberto se ele gostaria, né, de ser adotado agora, porque assim, né, você tem que saber da criança também.

E aí assim, foi tudo dando certo, pegaram um juiz bacana, tudo foi caminhando e ninguém contou nada para o Zé Roberto, foi porque, assim, o medo era de chegar lá na frente e a Dona Josefa receber um “não” e, de repente, não conseguir adotar o menino, e aí ele ficar mais frustrado que quase foi adotado e não foi. Mas ela estava tão disposta — Você vê como a pessoa é doida, né? Já amo —, que ela pensou “Se não der certo, eu vou roubar esse menino daqui e nós vamos embora pro Nordeste” — Dona Josefa sequestradora de criança, vê se pode. 

E a Dona Josefa ela tinha meio que um bordão, então sempre que ela via alguém assim triste, chateado ou que tinha dado errado alguma coisa na vida da pessoa, ela falava: “Ih, não esquenta, não, amanhã você vai ter sorte”, e ela falava muito isso para o Zé Roberto, porque lá era assim, quando chegava alguém para conhecer as crianças, com a intenção de adotar, depois que a criança tinha afinidade com alguém tinha uma sala tipo uma sala para pessoa ficar mais à vontade só com a criança, né? Pegar a criança no colo, essas coisas… E ele nunca tinha ido para aquela sala, nunca ninguém tinha chamado ele para lá. Quer dizer, nenhum dos adultos que foram lá visitar as crianças nunca teve esse interesse de conhecer ele melhor para adotar, então ele sempre ficava ali no coletivo. 

Ele nunca foi chamado para essa sala e, às vezes, a dona Josefa via já, antes mesmo dela ter a intenção de adotar o Zé Roberto, ele lá triste, chateado e ela falava: “Ô, Zé, não fica assim, não, amanhã você vai ter sorte”, aí depois de quase 10 meses de documentos, entrevistas, algumas entrevistas com o Zé, mas assim, tudo muito discreto porque todo mundo tinha medo pela idade da Dona Josefa, por ela ser sozinha, que ela não conseguisse…

Então um dia o Zé Roberto foi chamado lá pelo juiz para conversar e ele não sabia porque — Eu não sei se eu acho isso também certo, porque a criança ficou com aquela angústia, né? Tipo, eu vou conversar com o juiz por quê? Eu não sei, mas foi feito assim —, e depois de 10 meses ela teve autorização, aí eu acho que é uma primeira autorização, período e, se der certo, finaliza… Alguma coisa assim. Mas ela teve já o “ok” para poder levar ele para casa.

E aí ela resolveu fazer de um jeito diferente, ele nunca tinha tido uma festa, né? E aí lá eles resolveram fazer uma festa, que era uma festa para ele, para o José Roberto. E o dia anterior dessa festa, o Zé Roberto estava muito triste porque ele tinha se apegado a um menininho lá, muito pequenininho, que tinha ficado um tempo no abrigo e o menininho tinha sido adotado definitivamente, então era mais uma pessoa que ele tinha vínculo que ele perdia. E a Dona Josefa bateu nas costas dele assim, e falou: “Zé, não fica assim, não, amanhã você vai ter sorte”, e ele nem imaginava que no dia seguinte ele ia saber que ele ia para casa com ela. 

Pra essa festa Dona Josefa não precisou roubar nenhum doce, nessa altura do campeonato vários colegas de trabalho dela das festas chiques já sabiam que ela ia adotar o garoto e todo mundo colaborou, né? Então quem fazia salgadinho doa salgadinho, quem fazia doce doa doce… Ela ganhou um bolo muito bonito pra ele, eu vi a foto da festa, uma coisa muito bonitinha assim, muito fofinha e, atrás da mesa dos doces tudo, tinha um cartaz de cartolina mesmo, assim, escrito com canetinha, estava escrito “Zé Roberto”, e bem grande assim “Sorte”.

Aí contaram para o Zé, né, que ele tinha sido adotado e ele tomou um susto porque ele falou: “Quem me adotou? Ninguém veio me ver, ninguém conversou comigo”, e aí na porta assim de onde tinha festa dele, a Dona Josefa estava lá com as coisinhas dele já, tudo arrumado na mala para levar embora, e aí ele soube que a Dona Josefa tinha adotado ele. E ele, nossa, desabou também, né? Todo mundo chorou, inclusive eu que estou contando [falando e rindo ao mesmo tempo] a história. 

E aí foi uma festa e, assim, ele saiu de lá e ele queria ver tudo, eles tinham passeios e tal, ele ia para escola, mas ele nunca tinha ido muito longe. A Dona Josefa morava num quarto e sala bem espaçoso, com quintal, com cachorrinho, no subúrbio do Rio, então para ele aquilo foi o máximo, né? A hora que ele chegou tinha um quarto só, mas aí tinha a cama dela e perto da janela a cama dele, tudo arrumadinho, sabe? Com a roupa de cama do time que ele gostava… Então com aquilo ele ficou encantado. E aí ele começou a viver com a mãe dele, a Dona Josefa. 

E aí vida que segue, né? Vida de mãe e filho, ela fazia tudo por ele, era brava com ele para ele estudar, para ele, ir certinho na escola, colocou ele no judô… Então ele foi muito bem cuidado, foi muito amado e foi crescendo, se formou… E tudo que acontecia assim, de evento na vida dele, ela fazia um papelzinho, qualquer papel que tinha pela frente, ela escrevia “sorte” e dava para ele. E aquilo ele foi guardando… Então ele tinha cartolina, tinha pedaço de rascunho, tinha verso de notinha de supermercado, era sempre em eventos marcantes, ela escrevia “sorte” e dava para ele, que era o dia que ele tinha tido sorte — Gente, esse relato tá osso, hein? Tá osso. Eu já tô aqui com a voz toda anasalada, toda cagada no choro, e tá complicado, tô respirando aqui. Kiwizinho está até no meu colo aqui porque ele me viu e “Ô, poxa, minha mãe tá chorando, porque que minha mãe tá chorando?” Mas vamos que vamos, tô respirando aqui, vamos lá. —

Zé Roberto com muito incentivo da Dona Josefa, muito companheirismo, muito amor, conseguiu entrar numa faculdade pública. E ela fazia questão que ele estudasse, não deixava ele trabalhar e ela que bancava tudo. E aí, no dia que ele entrou na faculdade, que ela deu um papel para ele escrito “sorte” ele pegou um caderno desses universitários bem grossos e entregou para ela, o caderno estava bem surrado, um caderno grosso, assim, velhinho com as folhas amareladas. E aí quando ela abriu, ela viu que todas as páginas, todas as linhas estavam escritas “sorte”. Desde o primeiro dia que o Zé Roberto foi adotado ele começou a escrever esse caderno, porque assim, ele tinha sorte todos os dias [voz ficando embargada] — Gente, [voz emocionada e segurando o choro] como que eu vou narrar isso sem chorar, ficar toda remelenta, com a voz anasalada? Vocês me desculpem, mas não tem como, aguenta aí, aceita que vai ser assim, porque tô que tô em lágrimas. —

Vocês imaginaram a emoção da Dona Josefa nesse momento? De receber esse caderno e essa enorme demonstração de amor, de afeto? Ela começou a chorar, óbvio, tipo, a gente… — Sei lá, ou eu né, só eu e o Kiwi, porque o Kiwi também deu umas choramingadas aqui — Aí aconteceu, né? Ele fez a faculdade, ele conheceu uma moça muito legal… Zé Roberto se casou e, no dia do casamento dele, no bolso do paletó dele, a mãe dele colocou um papelzinho “sorte”. 

Zé Roberto teve uma filhinha e, no dia que a criança nasceu, na maternidade, a Dona Josefa já velhinha, né, ela já estava mais debilitada porque ela já estava diabética… Só que ela foi lá, pegou um papelzinho, pegou outro papelzinho e dessa vez ela escreveu dois papeizinhos, um ela colocou no bolso do Zé Roberto e outro ela colocou na mantinha que a criança estava enrolada escrito “sorte”. A Dona Josefa criou muito bem o Zé Roberto, eles passaram 18, quase 19 anos juntos, e ela já bem velhinha ano passado, começo do ano passado ela se foi, ela deixou a gente… — Que eu já estou me incluindo aí na família, desculpa Zé Roberto, mas deixou a gente. Pelo amor de Deus, Dona Josefa! Que mulher foi essa? Maravilhosa. —

E aí um pouco antes dela falecer, ela passou mal e foi internada e ela falou para enfermeira: “Olha, chama o meu filho aqui enquanto eu estou lúcida, porque eu sei que eu não vou ficar muito tempo ainda aqui”, e aí ele veio, né, eles ficaram um tempo juntos. Aí ela já estava fraquinha quase não conseguia escrever, mas a enfermeira ajudou e ela escreveu “sorte” num papel para ele, aí ela chamou ele perto da cama e disse: “Filho, a mãe te ama muito, a mãe tá indo embora e eu só quero que você saiba que aconteça o que acontecer, amanhã você vai ter sorte”, e nesse mesmo dia depois que o Zé Roberto foi embora, a Dona Josefa faleceu.

Pra você ver como são as coisas, né? Ele falou que enquanto ele estava lá parecia que ela estava lutando para não ir, que ela não queria morrer na frente dele e aí ela chamou ele de novo perto e falou: “Ó, eu acho que eu tô com vontade de tomar aquele café lá debaixo lá da lanchonete, você não quer buscar um café para mãe?”, e ela nem conseguia mais beber nada, ele meio que se ligou também, mas assim, sabia, mas não sabia. E aí ele desceu para cafeteria e quando ele estava lá na cafeteria, localizaram ele, e aí ela tinha morrido, foi o tempo dele descer e ela foi embora. 

E aí o Zé Roberto queria contar a história para gente, queria contar quem foi a mãe dele, o quanto ele ama a mãe dele — Até eu, quanto eu amo Dona Josefa, e o seu case de sanfona cheio de doce —, e é uma homenagem, né? Esse relato é uma homenagem para ela. Eu peço desculpas, que eu acho que eu podia ter contado a história melhor, até com mais detalhes, mas gente sem a menor condição, eu chorei do começo ao fim.

E, Zé, o que eu posso desejar para você é o que a sua mãe te desejava sempre: “sorte”. Eu espero que amanhã, depois de amanhã e sempre, que você tenha sorte, muita sorte. Gente eu sou zero profissional, né? Pensa uma pessoa em lágrimas do começo ao fim, toda anasalada, chorando, porque não tem estrutura, entendeu? Eu choro por qualquer coisa e coisa linda assim, pelo amor de Deus… Então, não tenho estrutura, né, assumo aqui essa vergonha pública. Amei narrar, mas podia ser melhor. E aí tem o nosso grupo para quem quiser ir lá comentar e falar bem da Dona Josefa, essa mulher maravilhosa. Ai, gente, é isso. Beijo.

[vinheta] Quer sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Amor nas Redes é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta] 

Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.