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título: parto
data de publicação: 06/10/2020
quadro: luz acesa – especial halloween
hashtag: #parto
personagens: renata, dona lurdes e cara sem nome

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Shhhh… Luz Acesa, história de dar medo. [vinheta]

Déia Freitas: Vamos mais uma história na sequência, a história é a história da Renata de Goianira, Goiás. O nome da história é “O Parto”.

[trilha]

A Renata conheceu um cara, namorou um tempo com o cara, foi morar com ele, engravidou dele. E quando ela estava grávida, quando ela ficou grávida, o cara se transformou numa pessoa péssima, num marido abusivo que não chegava a bater nela, mas ameaçava, torturava, fazia ela passar fome, não queria a criança de jeito nenhum, e ela resistiu, ela queria o filho e foi aguentando. Ela não tinha pra onde ir, ela era de uma cidade menor ainda que Goianira e totalmente sem recurso nenhum, então, a ideia era aguentar até ter a criança e, depois, sei lá, pedir abrigo numa casa de mulheres, ir pra Goiânia, algum lugar maior, se virar. Mas enquanto ela estava grávida, ali mais fragilizada ela aguentava essa criatura terrível, esse cara péssimo.

Como eu disse, às vezes esse cara fazia a Renata passar fome e ela já estava com a barriga grande, não conseguia trabalho, então ela limpava uma ou outra casa ali, mas ela não estava aguentando mais fazer serviços domésticos, assim, pegar faxina pra fazer e numa das vezes que ela estava vindo do mercado com esse cara, esse cara deu um safanão nela no meio da rua e, uma idosa que morava no outro quarteirão, que conhecia a Renata mais de vista assim, de falar “bom dia”, “boa tarde”, viu e chamou a atenção do cara e gritou com o cara e foi bem assim, né? Defendeu a Renata. A Renata começou a chorar, nem tanto pelo cara, mas era a primeira vez que alguém estava defendendo ela, né? 

E depois disso, quando ela passava a senhora sempre chamava ela pra conversar e um dia a senhora percebeu que ela estava meio trêmula e perguntou, ela falou: “Ah, é porque eu não comi nada ainda”, então a partir daquele dia ela devia estar com seis pra sete meses, a idosa todo dia chamava ela pra comer lá. [som de mesa sendo posta] Então ela começou a almoçar na casa da idosa na hora que o cara não estava, porque quando ele chegava à noite, ela não podia ir lá pra casa da mulher jantar, né? Mas a mulher chamava ela pra almoçar, fazia bolo pra ela e foi o que foi mantendo porque o cara não colocava nada dentro de casa, não deixava ela pedir as coisas, nada, uma vida bem difícil. E o que salvou a Renata foi essa idosa, um pouco pra lá do meio da gestação pro final.

E o tempo foi passando, a barriga dela foi crescendo e o cara sempre falava pra ela que, quando fosse pra ela ter o filho que era pra ela não incomodar ele, então ela tinha muito medo de entrar em trabalho de parto à noite e, de repente, acordar o cara, e o cara começar a bater nela porque ela entrou em trabalho de parto, enfim… Se aqui eu fosse fazer uma história de ficção, eu já ia inventar um jeito de matar esse cara, a minha história seria assim: com ela grávida matando ele, mas como não é a minha história de ficção, o cara continua aí vivo, por aí, pela a vida. Mas voltando pra história da Renata, ela tinha muito medo de entrar em trabalho de parto a hora que esse verme tivesse dormindo em casa e ele, sei lá, dar um chute na barriga dela, prejudicar o neném, alguma coisa nesse sentido.

E, muitas vezes, esse cara não saía pra trabalhar, então era os dias que ela passava mais fome porque ela não conseguia ir na casa lá da senhorinha, o nome da senhorinha é Dona Lurdes. E ela não conseguia ir na casa da Dona Lurdes pra comer, e aí passado algumas vezes que isso aconteceu, a Dona Lurdes arrumou um jeito de deixar a comida pra Renata, sabe no relógio de luz? Aquela casinha de relógio de luz de casa? Então ela fazia isso, ela ia até a casa da Renata, a casa da Renata tinha muro, mas não tinha portão, era sem portão, mas tinha muro. Então ela esticou o braço ali, ela não precisava nem entrar muito, [som de porta sendo aberta] ela colocava um prato de comida, alguma coisa embrulhadinha assim dentro do relógio de luz ali, a Renata já sabia, e a hora que o cara, sei lá, tivesse no banheiro ou desse uma cochilada ela ia lá pegava e ia comer lá no fundo do quintal, enfim, dava um jeito de comer.

E elas tinham essa dinâmica, a Dona Lurdes nunca deixou a Renata passar fome. Até que chegou na semana que seria a semana do parto da Renata e o cara estava em casa, todos os dias, então teria esse esquema aí do relógio de luz. Aí isso aconteceu um dia, isso aconteceu dois dias, no terceiro e no quarto dia isso não aconteceu, a Renata ia até o relógio de luz e não tinha comida, e aí ela falou que foram dois dias que ela passou tomando o café, ela tomava café colocava bastante açúcar pra matar a fome, no terceiro dia que ela já estava só na base do café, ela entrou em trabalho de parto e era noite. E o que ela fez? Ela tentou sair de fininho pro cara não acordar e ela na rua chamar algum vizinho, pedir socorro de alguém. 

Quando ela saiu na rua já com muita dor assim, andando com dificuldade, encostando pelos muros assim, ela viu a Dona Lurdes, e a Dona Lurdes veio chegando e falou: “Vem, vamos, vamos pra minha casa”, e ela sem conseguir pensar em nada ali foi junto com a Dona Lurdes pra casa da Dona Lurdes. [som de porta sendo aberta] Entrou na casa da Dona Lurdes, a Dona Lurdes colocou ela no chão da sala e, no chão da sala [som de mulher gritando de dor] a Renata teve o bebê dela, um menininho. E aí assim, já estava quase de manhã e ela ali com o nenê, e aí [som de pessoas falando] apareceu uma outra vizinha, e aí socorre um aqui, socorre outro ali, a Renata foi levada pro hospital. [som de ambulância] 

E, lá no hospital, depois que fizeram tudo, né? Que tiraram o bebê ali do colo dela e tal, ela perguntava muito da Dona Lurdes, né? “Cadê a Dona Lurdes, cadê a Dona Lurdes?”, e as vizinhas todas assim quietas, ninguém queria falar pra ela da Dona Lurdes. Aí uma hora lá ela ficou irritada e falou: “Não, eu preciso da Dona Lurdes aqui, foi ela que me ajudou no parto, ela tem que ficar aqui comigo”, e aí uma das vizinhas falou: “Não, é impossível, como assim ela te ajudou no parto? Você estava lá na casa dela, a casa dela não tem ninguém”, [efeito sonoro de suspense] aí a Renata falou: “Como assim não tem ninguém?”, a Dona Lurdes tinha parado de colocar comida no relógio da Renata porque três dias antes da data do parto da Renata, a Dona Lurdes tinha falecido. [trilha de suspense] 

Ela teve um mal súbito em casa, caiu no banheiro e morreu. Então por isso que não tinha mais comida no relógio de luz da Renata, só que a Dona Lurdes veio ajudar a Renata no parto, levou a Renata pra casa dela. A casa da Dona Lurdes já estava sem ninguém e ela apareceu, veio e a Renata falou que parecia de carne e osso mesmo. [som de mulher chorando] Daí a Renata começou a chorar, né? Teve uma crise de choro ali e, uma das vizinhas, porque aí virou aquela muvuca, né? Uma das vizinhas também entrou em choque porque foi a primeira vizinha que chamou as outras vizinhas pra ir lá ajudar a Renata, por que que ela foi? Porque a Dona Lurdes foi lá na casa dela que era no outro quarteirão da outra rua, e ela não tinha a informação que a Dona Lurdes também tinha morrido. 

Então, ela conhecia a Dona Lurdes ali do bairro, já era cinco e pouco da manhã e ela já estava fazendo café, porque o pessoal do interior, ainda mais idoso, acorda cedo. E a Dona Lurdes bateu ali palma no portão dela e falou: “Pelo amor de Deus, me ajuda. Vem na minha casa” e ela foi correndo atrás da Dona Lurdes, chegou lá encontrou a Renata e chamou as outras vizinhas. Então, quer dizer, ela também entrou em choque, porque foram duas pessoas que viram a Dona Lurdes, a Renata e essa vizinha que era da outra rua, do mesmo bairro, só que assim mais distante, né? E aí, gente, assim, primeiro que Dona Lurdes foi um anjo de luz, né? Eu dei uma chorada quando a Renata me contou essa história, porque história de gente que passa fome acaba comigo.

Hoje a Renata já está bem, casou de novo, o filho dela tem vinte e quatro anos, é um moço já, então isso tem muito tempo que aconteceu, né? E ainda bem, ela tá bem, nunca mais viu o cara, o cara não chegou nem a registrar a criança e ela não voltou a morar com o cara, ainda bem, né? Menos mal. Passou um perrenguinho depois, mas tudo se resolveu. Mas até hoje ela não esquece disso, né? Da Dona Lurdes. E a Dona Lurdes nunca mais apareceu pra ela, ela gostaria que a Dona Lurdes tivesse aparecido pra ela mais vezes, ela queria ver, não tem medo. Eu, Deus me livre, né? Mas é isso então, gente, eu não tenho a menor explicação pra essa história. Que explicação vocês têm aí pra esse Luz Acesa? 

[vinheta] Luz Acesa é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta] 

Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.