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título: turbante
data de publicação: 04/02/2021
quadro: picolé de limão
hashtag: #turbante
personagens: renata e william

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Picolé de Limão, o refresco ácido do seu dia. [vinheta] 

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei pra mais um Picolé de Limão e, assim, essa história ela pega em muitos lugares pra mim, então eu vou tentar contar da maneira menos rancorosa possível, mas já adianto que eu tenho muita raiva. Então vamos lá, eu vou contar pra vocês a história da Renata e do William.

[trilha]

A Renata e o William se conheceram na faculdade e começaram a namorar, os dois muito apaixonados, muito assim, gamados um no outro e o namoro virou um namoro sério. E aí chegou a hora de conhecer as famílias. Primeiro a Renata levou o William em casa no almoço e foi tudo maravilhoso, a família da Renata foi super acolhedora com o William, tudo perfeito. Aí chegou a hora do William levar a Renata na casa dele, antes de levar, a primeira coisa que ele falou: “Ai, não repara minha mãe é meio chata”. — Olha, eu perco até a voz, você vê como a coisa é… Nossa. — “Ai, minha mãe é meio chata, não repara”, e ela falou: “Ah, tudo bem, né? Sei lá, tem mãe que é muito assim apegada no filho, né?”, e lá foi ela, lá foi a Renata pra conhecer os pais aí do William. 

Chegando lá a futura sogra da Renata já olhou ela atravessada, mal falou com ela, eles comeram em silêncio, o pai tentou puxar uma ou duas conversas assim, amenidades… — Tentou puxar ali um assunto, né? Com ela, mas também não rolou. — E passou. E sempre que tinha alguma coisa na casa do William, raramente ele chamava a Renata pra ir, até que um dia rolou uma festa que era uma festa de aniversário para o William, então estava toda a família dele lá. E aí a coisa veio à tona, porque alguém lá fez um comentário racista, e aí agora a gente tem que falar que o William é branco e a Renata é negra. Então, rolou um comentário racista e William, óbvio, defendeu a Renata, mas ficou aquele climão, muita gente ali da festa riu, na festa a Renata falou que, de preto, tinha ela e um outro cara lá que era amigo do William, mas que estava também lá com os amigos conversando e tal, né? A festa de maioria brancos, mas o que pegou foi a postura realmente de alguns familiares do William. — Então já deu uma complicada. —

Mas o casal muito apaixonado, resolveram formalizar aí um noivado. Aí no noivado a mãe — Cretina — do William se posicionou, disse que não era do gosto dela que o William ficasse com a Renata, aí falou isso na cara da Renata, e Renata perguntou por que e ela não respondeu, falou: “Só não é do meu gosto”. Só que a Renata meio que sacou, e aí ela conversou sobre isso com o William e o William falou: “É, minha mãe, infelizmente, ela tem umas posturas racistas, mas ela é uma boa pessoa”. — Pra mim não tem como juntar na mesma frase: “ela é racista, mas é uma boa pessoa”. Ou ela é uma boa pessoa ou ela é racista, não existe racista que seja boa pessoa, tá? Isso é um fato, então ela não é uma boa pessoa, ela é racista. — E aí a Renata foi levando, eles fazendo planos pra casar e a Renata nunca tinha usado ainda com o William, usado turbante. Um dia ela apareceu de turbante e ele, simplesmente, surtou, palavras de William: “Que ela era muito bonita, mas que com aquele turbante ela estava parecendo uma escrava”. — Gente, gente… Renata você não terminou nesse momento por quê? —  

A Renata acha que o William é muito influenciado pela mãe e que por isso ele falou do turbante. Ela resolveu não usar mais turbante. — Quando todos nós sabemos que o correto seria ela terminar com ele. Gente, eu não aceito. — Eu vou contar uma história dentro da história do porquê que eu não aceito. 

[trilha]

Meus pais já são falecidos, meu pai morreu eu tinha doze, minha mãe morreu eu tinha dezesseis. A minha mãe era negra retinta, pele muito escura mesmo e meu pai muito branco e eu nasci é… marrom clara. A minha mãe sofria muito racismo dentro da família do meu pai, muito, escancarado, na cara dela, assim de tratarem a minha mãe como lixo mesmo. E eu pequena, eu não tinha essa noção, né? Então a minha avó que era uma racista maldita, a mãe do meu pai, tratava minha mãe que era um doce de pessoa, muito mal como se ela fosse um lixo mesmo. E eu criança não tinha essa noção. E a minha avó queria me cooptar pra família dela, porque ela não me queria junto com a família da minha mãe, óbvio. E eu não entendia… A minha mãe como uma pessoa muito boa que era, não fazia minha cabeça, sabe? Então, se a minha vó, se o meu pai queria que eu fosse dormir na minha avó, ela deixava, até que lá pelos meus seis, sete anos assim, eu comecei a ter noção, porque criança saca, criança sabe, e aí eu vi que a minha avó era uma pessoa ruim e eu nunca mais quis ir pra lá. 

Então aí minha avó começou a vir dormir em casa, junto com a minha mãe, meu pai e eu ali. E, mesmo na casa, dentro da casa da minha mãe, ela tinha coragem de tratar a minha mãe mal, de ser racista com a minha mãe dentro da casa da minha mãe, isso adoeceu a minha mãe, né? Minha mãe quando estava perto da família dele, ela ficava muito triste, então eu acho que ninguém merece isso, nem você, Renata, porque provavelmente é isso que vai acontecer. Se a família dele é racista e você casar com esse cara, você vai passar o que minha mãe passou e… Então, assim que meu pai morreu, a minha vó queria que eu continuasse indo na casa deles e eu já não ia, e agora com ele morto, ela ficava com aquele papinho de que “Ai, minha neta”, falei: “Não vou, não vou”, não gostava dela e não ia. E aí a gente cortou contato com eles, eu fiz a minha mãe cortar contato com a família do meu pai porque ele já tinha morrido mesmo e, quando ela morreu eu não contei pra ninguém lá, ela morreu eu tinha dezesseis anos, eu não contei pra ninguém lá. 

E aí agora, sei lá, dois mil e quinze ou dois mil e quatorze, não lembro, a minha avó já devia tá morta, porque ela já era uma velha bem velha, mas os irmãos do meu pai que eram muito racistas com a minha mãe também, — E todo mundo da igreja viu lá, eles eram todos da igreja lá, mas tudo racista — resolveram aparecer na minha casa. Um belo dia — Porque eu sempre morei na mesma casa, né? — toca a campainha, dois carros cheio de gente branca que eu nunca assim, lembrava da cara, falando: “Ah, eu sou sua tia”, “Ai, eu sou seu tio”, e aí eu falei: “Ahn? E aí?”, aí uma das minhas tias falou assim: “Ai, a gente veio pedir perdão pra sua mãe”, aí eu falei: “A minha mãe não mora mais aqui”. — Não falei que minha mãe estava morta — falei: “Minha mãe não mora mais aqui, mas eu dou o endereço dela pra vocês, vocês vão lá e pedem perdão”. Aí coloquei num papel o endereço do cemitério, tipo rua tal, número tal, quadra tal, a quadra era a quadra onde minha mãe está enterrada, então, eu espero do fundo do meu coração que eles tenham ido lá até esse endereço e tenham visto que era um cemitério, porque eu não escrevi no papel que era um cemitério. Eu espero. 

E aí ela também falou que ela queria retomar o contato e eu disse: “Não”, falei: “Não, eu não tenho interesse” e fui bem fria mesmo, bem, atendi eles na calçada e ela me deu um papel com o telefone dela que, lá mesmo na calçada eu rasguei, lá mesmo eu deixei. — Ainda sujei a rua, né? Mas enfim, eu estava, eu precisava desse drama, sabe? Esse, sabe, impacto de rasgar o papelzinho. — Mas é uma história que ainda me machuca muito por causa da minha mãe, sabe? Eu sei o quanto ela sofreu. Então, eu assim, Renata, eu, Andréia falando pelo que eu passei e vi minha mãe passar, meu, não casa com esse cara, por mais que tenha amor, o tanto que você vai se machucar, sabe? Das coisas que você me contou, que nem tudo eu posso falar aqui que essa família já fez pra você, olha, amor nenhum, de homem nenhum, vale a nossa saúde, o nosso bem-estar, sabe? A gente se sentir um ser humano. 

Então… A minha resposta é larga, né? Mas então, você veja, você gosta de usar turbante, ele já não gostou que você use turbante, não te proibiu, mas você resolveu não usar mais porque o argumento dele é que você parece uma escrava, sabe? Olha, eu não sei nem o que dizer. — E, ai, gente, eu vou parar, é isso. — Histórias como a da Renata me despertam assim gatilhos terríveis e, ai, Renata, eu, sei lá, desejo o melhor [voz de choro] pra você, mas sai dessa. — Desculpa se eu me deixar influenciar, é que assim… — Pensar no que minha mãe passou, em tudo que a gente passou com a família do meu pai, eu tenho muita raiva, muita mágoa. — E eu quero que eles morram. — Jamais vou perdoar, jamais, não sou esse ser humano superior que perdoaria. — Não vou perdoar. — E eu não quero, Renata, ver você ou, de repente, se você tiver um filho que ele fique como eu, entendeu? — Então é isso, é… Desculpa, gente, não era nem para eu chorar, mas… —

Renata, eu tô falando pro seu bem. Então, deixem mensagens gentis pra Renata lá no grupo, mas eu não me conformo que um cara teve coragem de olhar para a cara dele e falar que, sabe, uma vestimenta que ela gostou, que ela tá parecendo uma escrava… Ninguém precisa passar por isso, gente. Não, não, não passem por isso, por se sentirem de repente sozinha, por querer ser amada, porque isso não é ser amada, isso não é ser amada… Ninguém, ninguém precisa passar por isso. Então um beijo e até daqui a pouco.

[vinheta] Quer a sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Picolé de Limão é mais um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]

Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.