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título: o jardim
data de publicação: 17/09/2021
quadro: luz acesa
hashtag: #jardim
personagens: hamilton e seu joão

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Shhhh… Luz Acesa, história de dar medo. [vinheta]

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. E cheguei para um Luz Acesa zero medo. — Zero medo mesmo. — Hoje em comemoração à sexta-feira 13 de agosto, que para muitos aí pode ser um dia de terror ou… — Um dia de falta de sorte. — Para mim não. A minha mãe nasceu numa sexta-feira, 13 de agosto, o ano era 1937. Então sempre foi uma data muito comemorada pela gente, né? Ainda mais quando o aniversário dela, 13 de agosto, caía numa sexta-feira. E ela sempre gostou de ter nascido numa sexta-feira 13, de agosto. — Minha mãe era muito peculiar. — É uma data que me traz assim muitas lembranças felizes. Eu não quero quebrar a tradição de contar um Luz Acesa numa sexta-feira 13, então vamos lá, vamos de história. 

[trilha]

Era novembro de 1993 e o garotinho Hamilton de 16 anos ajudava o pai a engraxar sapatos aqui em São Paulo, no Largo São Bento. E o pai dele, o Seu João, fazia isso para viver. Eles engraxavam sapatos. A mãe do Hamilton tinha abandonado ele e o seu João quando o Hamilton tinha dois anos, ela tinha voltado para Londrina e ninguém sabia dela mais. Então a vida ali era só os dois, né? — O Hamilton e o seu João. — E um dia o Seu João tava ali engraxando sapatos e ele percebeu que ele não conseguia segurar a escova direito, no braço dele ele sentia umas partes assim formigando e algumas partes ele tocava e não sentia nada, parecia que estavam mortas assim… — Entre aspas, né? — Mas ele se esforçou ali, engraxou mais uns sapatos e eles voltaram para casa. 

Passando ali uns dias, o São João não conseguiu levantar. E aí ele precisou da ajuda ali dos vizinhos, o Hamilton foi chamar os vizinhos e eles se mobilizaram para levar os Seu João até o hospital. Antes de sair para o Hospital, o Seu João virou pro Hamilton e falou: “filho, vai lá pro Largo de São Bento, vai lá engraxar sapato… O Pai vai no hospital e lá do hospital eu vou direto para o Largo e a gente continua trabalhando e volta à noite”. Só que o dia passou, Hamilton ficou engraxando os sapatos ali no Largo do São Bento sozinho e quando ele voltou para casa à noite, o seu João não estava. O Hamilton correu ali para a casa da vizinha, né? Pra saber notícias do pai e ninguém sabia explicar muito bem, mas o seu João tinha ficado internado. Ele tinha sido diagnosticado com hanseníase e ele ia precisar de um tratamento longo. 

Então levaram seu João para uma espécie de colônia. E lá o Hamilton não podia ficar com ele, então o Hamilton ali soube que o pai dele ia ficar longe um tempo e ele ali naquele casebre onde ele morava, ele passou a noite chorando. A vizinha deu um prato de comida para ele, né? E ele passou a noite sozinho, chorando e no dia seguinte a vizinha viu que ele estava bem mal, né? Estava muito triste, abatido e ela falou: “Olha, Hamilton não fica assim, no final de semana eu levo você para ver o Seu João, né? Para ver o seu pai”. O Hamilton nem conseguiu ir lá para o Largo do São Bento engraxar sapato, ele estava assim, arrasado, e aí ele passou o dia perambulando ali pelas ruas do bairro mesmo que ele morava, cabisbaixo, triste… Não comeu, nem nada. 

Quando ele voltou para casa… — Uma surpresa horrível. — O hospital tinha acionado o que na época se chamava “juizado de menores”. — Hoje eu acho que é Juizado da Infância e Juventude”, não sei se é isso, mas eu acho que mudou para isso. — E o juizado levou o Hamilton. E aí a vizinha ficou desesperada, mas não tinha o que fazer. No final de semana ela foi visitar o Seu João e contou para ele, né? Que o juizado tinha levado o Hamilton e o Seu João chorou muito, chorou demais… E a partir desse dia, o seu João que ficou internado por muitos anos, sempre ficava falando do filho pras enfermeiras. — E quem me contou essa história no Twitter foi uma filha de uma enfermeira que tratou o seu João. — 

Os anos foram ali se passando e o Seu João sempre imaginava como o Hamilton estaria, né? Se ele estaria mais alto, mais forte… Será que ele estava de barba, sem barba? E o sonho do Seu João era que o Hamilton aparecesse ali, né? Naquele lugar onde ele estava internado pra fazer uma visita, para poder abraçar o filho. — Sei lá, mais uma vez, né? — E aí a gente chega no ano de 2004. Era o dia 14 de março e o Seu João aquele dia ele acordou animado… Ele brincou com as enfermeiras, ele já estava numa cadeira de rodas, né? Então ele pediu que uma das enfermeiras deixasse ele no jardim, para ele tomar um pouco de sol e respirar um pouco de ar puro e tal. 

E quando seu João estava ali tomando um solzinho e tal no jardim, ele olhou para o lado e lá assim, lá no começo do jardim ele viu um jovem assim muito bonito que estava vindo até ele, né? E um rapaz assim sorridente… Conforme esse rapaz se aproximava, os seu João percebeu que era o Hamilton. Gente… Era o Hamilton chegando, ele estava bonito, cheiroso e sorrindo assim para o pai, né? E por mais que o Seu João olhasse para Hamilton de longe, ele queria levantar daquela cadeira e correr até ele, mas ele não conseguia andar mais, né? O Hamilton foi se aproximando já com os braços abertos assim, um olhar de muito amor para o pai e o Seu João começou a soluçar, chorando assim desesperado e eles ficaram um tempo ali abraçados, né? 

O Hamilton não falava nada, só sorria e abraçava o pai. E o Seu João chorando muito, soluçando e tentando limpar as lágrimas, sabe? Com a camisa, para olhar direito para o filho, para ver como o filho estava… E num desses momentos que ele foi limpar os olhos, ele viu que o Hamilton já estava assim um pouco mais longe, já tinha soltado do braço, já estava indo embora… E aí o Seu João começou a chorar de novo, e a chamar “Hamilton, Hamilton, Hamilton”. E aí os enfermeiros ali escutaram, né? E vieram até ele. E na parte que ele estava no jardim, era um jardim muito grande assim e que dava para você ver tudo em volta, e não tinha ninguém… 

Então os enfermeiros ali não viram ninguém perto do seu João, e os Seu João ficou tão mal assim, tão desesperado, querendo que alguém achasse o filho dele, o Hamilton ali no jardim, que uma enfermeira resolveu pesquisar para onde o Hamilton tinha sido levado, né? Porque agora ele já era um homem. — Então, de repente, ela podia achar alguma pista. — Então ela entrou em contato com o Juizado de Menores e ela ficou sabendo que, na época, eles mandaram o Hamilton pra FEBEM. — Na época era FEBEM ainda, né? Hoje é Fundação Casa. — 

Aí na FEBEM, logo depois que ele foi internado lá, aconteceu uma rebelião e um dos internos feriu o Hamilton e ele não resistiu e morreu. Ainda naquele mesmo tempo que ele foi internado lá. A enfermeira resolveu não contar nada para o seu João e, a partir daquele dia que seu João encontrou o Hamilton no jardim, todo dia, na mesma hora ele ia ali pro jardim na esperança de ver o Hamilton de novo. Só que o Hamilton não apareceu mais. E dois meses depois dessa visita do filho, o seu João adormeceu ali no jardim e faleceu. E aí a história foi me contada até aí… E eu gosto de imaginar que o Hamilton veio buscar o seu João, dois meses antes ele veio avisar, veio preparar o pai de alguma forma, né? E que no dia que o João partiu era o filho que estava esperando ele ali naquele jardim. 

É uma história triste, mas de alguma forma, se realmente existir aí um mundo além desse mundo, eu espero que Hamilton e seu João estejam juntos. 

[trilha]

Assinante 1: Aqui é a Jaqueline de Belo Horizonte. E Jardim é das histórias mais bonitas que eu já escutei aqui no podcast, é um Luz Acesa que traz muitas camadas sobre a história de desigualdade do Brasil. A forma como o cuidado da hanseníase era conduzida, a forma como Hamilton foi separado do pai… Então, assim, é uma história que ao mesmo tempo ela é triste e ela é bonita. E eu me senti transportada para dentro de um romance com a narração da Déia, sabe? Então é uma história linda que me deixa bastante emocionada, e que me fez refletir sobre várias questões da história do nosso país. Um beijo. 

Assinante 2: Oi, Não Inviabilizers, aqui quem está falando é Priscilla Armani, aqui de Belo Horizonte. Essa história me tocou muito, de um jeito muito profundo… Porque eu tive a oportunidade de, trabalhando como jornalista, visitar uma colônia de hansenianos aqui em Minas Gerais. O que aconteceu foi que depois que o Estado desativou essas colônias, algumas pessoas continuaram morando lá. Isso porque o Estado separou essas famílias, né? Essa história do Hamilton e do seu João, isso aconteceu com muitas pessoas, muitas famílias foram separadas e essas pessoas ficaram lá e foram simplesmente abandonadas. Eu quero aproveitar essa história tão emotiva, tão emocionante para lembrar que hoje em dia a hanseníase é uma doença que tem cura, a gente não deve ter nenhum preconceito com relação a isso. E o tratamento é muito mais humanizado e acessível pelo Sistema Único de saúde, e a gente não pode se esquecer da dívida que a gente, como sociedade, tem com essas pessoas. Nós passamos muito tempo isolando essas pessoas ao invés de buscar um tratamento mais acessível, mais humanizado que não as isola-se de tal forma de suas famílias, de seus lares, né? E eu gosto de pensar que, se fosse uma história mais atual, mais próxima da nossa realidade hoje, Hamilton e o seu João não teriam precisado se separar, né? Então eu espero que os dois estejam em bom lugar, onde quer que estejam e eu espero que essas pessoas que ainda sofrem as consequências do que essas colônias fizeram, recebam justiça de alguma forma e encontrem a paz. 

Déia Freitas: Então essa é a história de hoje, é um Luz Acesa zero medo, e que foi contada aqui para os assinantes do canal no dia 13 de agosto de 2021. Se você não é um assinante ainda, aqui na descrição do episódio tem o link para o nosso Apoia-se, vá lá e assine. Então é isso, gente, um beijo e até breve. 

[vinheta] Luz Acesa é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta] 

Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.