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título: torta de climão
data de publicação: 10/08/2022
quadro: picolé de limão
hashtag: #torta
personagens: tamires

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Picolé de Limão, o refresco ácido do seu dia. [vinheta] 

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei pra mais um Picolé de Limão, e hoje a história de firma. — Eu amo história de firma. — Eu vou contar para vocês a história da Tamires. Então vamos lá, vamos de história.

[trilha]

A Tamires, no início da pandemia, ficou desempregada, mas três meses depois ela conseguiu um emprego para trabalhar em uma empresa grande aí, no atendimento e, no grupo dela, todas as pessoas foram contratadas, assim, durante a pandemia pra trabalhar em home office em atendimento. E tudo deu muito certo ali, uma equipe muito unida, muito coesa ali, eles com um grupo no WhatsApp e nã nã nã… Quando foi março agora, que eles já estavam há uns sete meses assim, trabalhando em home office, março agora a empresa convocou pra trabalhar presencial. Então teria umas escalas ali e nã nã nã, o espaçamento e nã nã nã e foi todo mundo trabalhar presencial. — Não tinha choro, tinha que ir. — E aí as pessoas finalmente se encontraram e começaram ali agora um relacionamento não virtual. Todo mundo trabalhando junto, aquele grupo que foi contratado online e que tinha um grupo de WhatsApp e nã nã nã… 

A coisa ia bem até que começou a rolar ali um negócio estranho. Então, ah, um dia uma reclamava que sumiu um batom, outro dia a outra reclamava que “ai, meu Deus, eu jurava que eu tinha trazido 20 reais” e não achava os 20 reais… Nessa empresa, você podia se você quisesse comprar um delivery pra comer, porque não tinha refeitório e essas coisas, você podia… O porteiro interfonava para o seu setor, alguém do seu setor te avisava e você descia e pegava. Você também podia dar o endereço da empresa pra sua correspondência… Você podia usar aí o endereço da empresa pras suas coisinhas. E muita gente fazia isso lá, né? Por que dar ali o seu endereço residencial quando você fica o dia inteiro praticamente na firma, suas encomendinhas vão chegar em casa, não tem ninguém e vão voltar… Então, a empresa aí te dava essa opção e não tinha dado problema até agora, enfim… 

Até que um dia alguém comprou um livro e o livro chegou lá e sumiu… E o porteiro ali, com aquele fluxo, não lembrava muito bem quem tinha vindo do setor retirar o livro e a pessoa que comprou o livro resolveu deixar pra lá e tudo bem, passou… Até que nossa amiga Tamires resolveu encomendar — de uma doceria aí — uma torta — uma torta grande, bonita, doce. — para o aniversário da mãe dela. Porque, assim, o bolo uma tia dela já ia fazer e ela queria ter uma torta, que é uma torta que a mãe dela gosta… — Que aqui a gente vai falar uma torta de maçã. — Então, aí essa torta de maçã foi encomendada… E qual era a ideia? Ela combinou ali com a doceria que ia entregar. — Tipo, Tamires saia às cinco horas, então a doceria ia entregar a torta quatro e meia. — Porque aí ficava meia hora ali a torta e depois ela pegava aí um carro de aplicativo e ia pra casa com a sua torta, super feliz, para o aniversário da mãe dela. E, assim, né? Era a Tamires que estava organizando o aniversário da mãe dela, — que seria ali pra dez pessoas da família — e todo mundo estava se reencontrando agora, todo mundo vacinado, então ela estava muito feliz que isso ia acontecer. 

E ela ali super esperando a torta, mas fazendo as coisinhas dela, [efeito sonoro de campainha tocando] o interfone do setor tocou algumas vezes e deu o horário… — Isso tudo aconteceu numa sexta—feira. — E deu o horário de chegar a torta e nada da torta… Tamires falou: “Ah, vou esperar mais dez minutinhos”. — Ela estava trabalhando, saía às cinco, né? Então ficou ali fazendo as coisinhas. — Deu mais 15 minutos, nada… E aí ela ligou na doceria [efeito sonoro de telefone chamando] e a moça da doceria falou: “Não, o rapaz pegou aqui a encomenda e já deu aqui pelo meu aplicativo de entregas que foi entregue aí”. E aí quem assinou… — Tipo, é aquele negócio que você entrega, o rapaz entregou a torta, uma pessoa assinou e ele fotografou a assinatura e mandou lá pra a empresa dele, sei lá, num sistema X e estava lá “Tamires Silva”. — Só que a Tamires não recebeu a torta, a Tamires falou: “Mano, esse cara aí tá mentindo, ele não entregou aqui a torta e tal”. 

E aí ela desceu pra falar lá na portaria. Só que na portaria era troca de porteiros ali e aquele tumulto, o pessoal saindo… — Porque muita gente sai às cinco, né? — A Tamires não conseguiu a informação. E aí ela foi embora frustradíssima e sem a torta para o aniversário da mãe dela… Que ia ter bolo, ia ter uns salgados e tal, mas ela queria que tivesse a torta de maçã e não ia ter a torta de maçã. Só que Tamires ficou no veneno, falou: “Não, segunda—feira essa mulher vai ter que me devolver o dinheiro da torta”. — A mulher da doceria. — E aí passou o final de semana ali, assim, P da vida, né? E na segunda-feira ela mandou mensagem pra mulher ali via WhatsApp [efeito sonoro de mensagem no Whatsapp] e falou: “Olha, eu não recebi torta nenhuma e nã nã nã”. Só que a mulher já tinha se antecipado e já tinha pedido pra empresa lá de entregas localizar o cara que entregou a torta, pra saber pra quem ele entregou. E aí o cara falou: “Mano, eu entreguei lá, entreguei pra uma moça loira de cabelo até, assim o meio do pescoço… Cabelo lisinho até o meio do pescoço, assim e ela escreveu, ó, Tamires Silva, tá aqui e tal”. Então ela já tinha essa informação, que era uma moça loira de cabelo lisinho até o meio do pescoço, magra, alta…

E aí na hora a Tamires gelou… Primeiro, porque a Tamires é negra, então não foi ela mesma que recebeu a torta. E, por ela conversar com a moça pelo WhatsApp, a moça já tinha essa informação. Ela falou: “Olha, Tamires, eu estou vendo aqui que realmente não foi você quem recebeu, porque eu estou vendo sua foto aqui no WhatsApp e ele falou que foi uma moça loira, de cabelo no meio do pescoço e tal, mas ela escreveu seu nome então a torta foi entregue, né? Você precisa ver aí na sua empresa quem foi”. E a Tamires já sabia quem tinha sido, porque a única moça do setor dela que era loira, alta e o cabelo lisinha no meio do pescoço era uma moça aí que vamos chamar de “A usurpadora”. E aí era essa Usurpadora… E ela foi seca na moça, [efeito sonoro de tensão] falou: “Então, você recebeu minha torta na sexta—feira, por que você não me entregou? O que você fez e nã nã nã?”E a moça deu uma de sonsa, falou: “Não, eu não peguei torta nenhuma, não… Não recebi, não” e bateu o pé que não. 

E aí lá na portaria a Tamires foi lá na portaria pra ver quem era o porteiro que estava lá e o porteiro falou: “Foi a usurpadora que recebeu sua torta… E ela subiu com a torta”. Só que a Tamires não entende onde é que ela deixou essa torta, porque no setor ela não entrou com a torta, senão a Tamires tinha visto, era uma torta grande. — Então não se sabe o que ela fez… — E aí Tamires puta da vida resolveu ir no RH fazer uma denúncia realmente de que a moça pegou a torta e ainda assinou… Ela tinha o print que a moça tinha mandado pra ela da doceria lá e ela abriu, realmente assim, formalizou uma queixa.

E aí o RH falou: “Olha, vamos apurar e nã nã nã”, e a Tamires voltou lá pra a sala dela, né? Que era uma sala em comum. Essa moça já estava com… — Sabe aquele jeito culpado, aquele olhar cabreiro? — E Tamires jogou no grupo que, inclusive, a moça tava e uns ficaram: “Nossa, mas será?” e a moça no grupo… Outros: “Ah, deixa disso e nã nã nã”. E aí isso foi logo que Tamires chegou na segunda-feira antes do almoço.

Na hora do almoço, ela percebeu que tinha algumas pessoas do grupo numa rodinha com essa moça e essa moça chorando. — Gente, como eu odeio isso… Tipo, a Tamires estava certa e a moça lá estava chorando e algumas pessoas consolando a moça. — Bom, passou… Tamires falou com a mãe dela, a mãe dela falou: “Olha, melhor você deixar isso de lado, enfim… Capaz que te prejudique no trabalho” e a Tamires não mexeu mais com isso. Mas quando deu ali dez dias, a moça que pegou a torta, a usurpadora, foi mandada embora. — Foi mandada embora… — E o feedback que a Tamires teve do RH é que “ah, então, nós conversamos com fulana e tal, ela negou, mas aqui tem as câmeras, nós levantamos e foi ela realmente que pegou a sua torta. A gente tem aqui uma… Como se diz… Uma orientação pra saber quanto foi essa torta, a empresa vai te ressarcir e nã nã nã”, e a Tamires falou: “Não, eu não quero ser ressarcida de nada e tal”, mas a Tamires não acho que a moça fosse mandada embora e foi…

Porque parece — o RH não confirmou, mas, assim, uma fofoquinha que rolou ali — é que ela já tinha feito isso algumas vezes desses seis meses que a galera tá lá no presencial, que não foi a primeira vez e que algumas pessoas já tinham relatado furtos. Então, sei lá se a empresa não foi checar câmeras de mais tempo. — Isso não se sabe, isso é uma fofoca, né? O fato concreto é que a Tamires fez uma reclamação formal e a moça foi mandada embora. — Só que aí agora, gente, o clima da empresa é assim: Ela não é administradora do grupo lá que eles criaram entre os atendentes e os dois administradores não tiram a moça… — A moça pobrezinha, loira, indefesa que foi demitida, que, “ai, não precisava tanto, agora ela está muito mal e nã nã nã”. — E tá todo mundo meio que tratando a Tamires como a vilã da história, né? Como a pessoa que fez a outra ser demitida. — E, gente, eu sou a pessoa mais suspeita pra falar sobre isso, porque eu não ia no RH… Eu sou a pessoa que não iria no RH, mas assim, a Tamires super fez o que eu gostaria de ter coragem de fazer, sabe? Que é ter ido no RH e feito denúncias, sabendo já que a moça era culpada. Porque, assim, não foi uma denúncia vazia que ela fez ou, sei lá, uma suposição, ela tinha as informações. E aí o RH comprovou que era verdade e a moça foi demitida.  —

E aí agora o grupo trata a moça como, “ai, coitadinha” e todo mundo tá meio assim… Ninguém tá tratando a Tamires mal e tal, mas tá todo mundo meio “nossa, tipo, exagerou”, sabe? E aí isso me traz muitas questões… Por que sempre a pessoa loira é frágil e indefesa e a pessoa negra é a pessoa raivosa? É a pessoa que [efeito de voz grossa] “ah, exagerou”, “ah, porque isso que você fez foi muito forte”, sabe? — Por quê? Por que será? — Eu acho que, nessa história, eu tinha que trazer esse recorte racial, porque eu acho que, se fosse ao contrário, talvez a Tamires fosse até presa por causa da torta, né? Então esse recorte, nessa história… — Eu procuro não fazer recorte nenhum de raça, faço de classe às vezes quando precisa… — Mas nessa história eu acho importante destacar que quem pegou a torta e, provavelmente, furtou umas outras coisas lá de dentro e por isso que foi mandado embora, não só pela torta… Mas enfim, que seja só pela torta, foi uma moça loira que, ai, agora tá chorando, indefesa e a Tamires que pagou a torta, que encomendou, que fez tudo certinho, tá todo mundo achando que ela exagerou. — É difícil, né, gente? — 

Eu, no lugar da Tamires, já tinha saído do grupo… Já tinha dado um esculacho geral, já tinha saído do grupo e já tinha virado a cara pra todo mundo da empresa, eu sou dessas… E não estou nem aí, chego lá, bato o meu ponto, faço o meu trabalho, almoço sozinha e vou embora, tô nem aí. Então, mas eu entendo, né? Que a Tamires quer continuar no grupo, quer se conciliar com a galera, mas mano, você não fez nada de errado, né? Você tentou resolver com a menina, entender porque ela pegou a torta, ela se fez de sonsa, falou que não pegou e você foi onde tinha que ir. Eu não teria coragem de fazer isso porque eu sou uma pessoa mole, mas você fez tudo certo, tudo certo… Não errou em nada, em absolutamente nada. Então, eu queria deixar pra vocês aí esse recorte racial, porque isso acontece muito.

[trilha]

Assinante 1: Oi, Tamires. Sua história me tocou muito, porque eu tô vivendo uma situação semelhante no trabalho, em que uma pessoa branca, eu sou negra, fez algo que eu não gostei, eu reclamei e as pessoas ao redor passaram a me tratar de uma forma ruim, né? Me preterindo. E é muito ruim você ter que frequentar diariamente um ambiente que você simplesmente não pode deixar de ir e em que você não se sente bem-vindo. É muito ruim, machuca muito… E o que me ajudou e o que eu dou como dica pra você é: Não dê tanta importância pra essas pessoas, eles não são seus amigos. Seus amigos estão fora do ambiente de trabalho e jamais iriam te responsabilizar pelo erro alheio. Eles tão te responsabilizando simplesmente porque a pessoa que errou tem a cara de vítima, do ponto de vista deles. É loirinha, é branquinha, então você é a raivosa, você é a negra que exagera as coisas e que reage demais. Segue seu caminho, fique bem, espero que tudo se resolva. E deixa esse povo pra lá, porque não vale a pena você se esforçar pra manter perto gente que te trata assim. Um beijo.

Assinante 2: Oi, gente, oi, Déia, eu sou Luciana, falo de São Paulo. Eu acho que falta a percepção, da maioria das pessoas, e o entendimento de que o racismo ele é estrutural, logo, ele beneficia pessoas brancas em detrimento de pessoas não brancas, né? Que são negras, indígenas e tudo mais… Então, isso é racismo, isso é racismo no mais puro… Na sua essência. O racismo do nosso dia a dia. Tamires, eu te desejo muita força, te desejo outras mulheres negras pra que tu possa compartilhar e ter apoio. E a gente sabe que tá cheio de Usurpadora por aí, né? Eu, como mulher negra, também já tive que lidar com várias e infelizmente eu entendo a tua solidão nesse processo. Te desejo muita luz, muito axé e: Você não está errada.

[trilha]

Déia Freitas: Então é isso… Eu não tenho muita coisa boa pra dizer sobre isso, além de que é racismo. E, Tamires, eu que sou rancorosa teria saído do grupo já, já teria virado a cara pra todo mundo… Mas como você quer aí uma conciliação, eu vou jogar para o nosso grupo do Telegram. Quem tiver aí uma luz pra Tamires, uma forma dela ficar bem aí nesse grupo… Mas, assim, com a moça lá no grupo ainda não dá, né, gente? — E esses administradores? Ai, eu já teria dado esculacho ali na empresa ali, pessoalmente. — Mas a Tamires não é essa pessoa, sabe? Ela é uma pessoa super tranquila, super de boa, ela só quer trabalhar e ficar em harmonia com os colegas de trabalho. Então eu deixo pra vocês. Se você ainda não está no nosso grupo do Telegram, é só entrar lá no Telegram e jogar na busca “Não Inviabilize” que o grupo aparece, tá bom? Então um beijo e eu volto em breve.

[vinheta] Quer a sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Picolé de Limão é mais um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]
Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.