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título: se liga
data de publicação: 02/03/2023
quadro: picolé de limão
hashtag: #seliga
personagens: tamires, murilo e dona jacira

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Picolé de Limão, o refresco ácido do seu dia. [vinheta]

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei pra mais um Picolé de Limão. E hoje eu vou contar para vocês a história da Tamires. — Preciso avisar que essa história é na mesma vibe da história “Surra”. Então tem relato de racismo e tem aí um pouco de violência. Então, se você se sentiu mal aí ouvindo Surra, você vai se sentir mal agora também, então não ouça. — Então vamos lá, vamos de história.


[trilha]


A Tamires é uma mulher negra que se casou com um homem branco. — O Murilo. — E eles têm aí na família a dona Jacira, que é a mãe do Murilo, que também é uma senhora branca. E dona Jacira acolheu muito bem a Tamires… — Tamires nunca teve problema com ela. — Só que dona Tamires tem um outro filho, né? — O irmão de Murilo. — E esse irmão de Murilo casou com uma moça branca que faz muita piada racista com Tamires. E aí no começo, logo que Tamires foi introduzida ali, naquele ambiente familiar, essa moça aí racista começou com algumas piadinhas, o Murilo deu corte, dona Jacira deu bronca nela, amenizou um pouco. Só que sempre rolava, né? — Uma piadinha ou outra. — 

Aí, um dia, Murilo acabou batendo boca com ela e, consequentemente, boca com o irmão. O irmão pediu desculpas pela esposa, não defendeu a esposa, mas a coisa ficou assim, meio forte ali. E dona Jacira falou uma coisa pra Tamires, falou: “Olha, Tamires, você precisa saber algumas coisas dessa família… Essa minha nora aí, ela é muito bocuda. Ela já inventou uma fofoca aqui na vizinhança sobre a dona Valdete. Dona Valdete tem 68 anos e dona Valdete ficou viúva e ela fez uma piada que dona Valdete agora podia assumir o romance secreto que ela tinha com o seu Zé da Quitanda”. — E Dona Valdete nunca traiu o esposo que faleceu… — “E isso chegou no ouvido da dona Valdete… Um dia essa minha nora estava chegando aqui e dona Valdete jogou ela no chão e deu uns tapa na cara dela. E aí você sabe que eu e dona Valdete…”.


Isso dona Jacira falando, né? “Estamos protegidas aí pelo Estatuto do Idoso… Então, quando minha nora entrou aqui dizendo que dona Valdete tinha batido nela, eu falei: “Olha, se você for dar queixa de dona Valdete, você vai ficar presa porque você bateu na idosa”, aí a nora falou: “Mas eu não bati nela”, ela falou: “Bom, isso é você que está falando, né?” [risos] E aí ficou por isso mesmo… Só que aí essa nora nunca mais falou nada de dona Valdete e, dona Valdete aí, no auge dos seus 68 anos avisou que, toda vez que cruzasse com essa nora de dona Jacira na rua, ia bater nela. E aí essa nora foi reclamar com dona Jacira, a dona Jacira falou: “Ué, você não falou? Agora você aguenta.” [risos] Então, sempre que essa nora vê dona Valdete essa nora atravessa a rua. Ou se a dona Valdete está na casa de dona Jacira, a nora volta correndo… — Ela não confronta a dona Jacira. —


Dito isto, dona Jacira disse pra Tamires: “Olha, isso só vai parar o dia que você quebrar ela no pau”. E aí a Tamires ficou horrorizada, porque falou: “Eu jamais, Andréia… Jamais bateria em alguém. Eu sou uma pessoa totalmente do diálogo e, mesmo ela me magoando e tal, a gente bateu boca, mas jamais iria pra cima dela”. E aí dona Jacira falou: “Olha, eu estou te falando isso porque eu sei que é assim que funciona, mas você não quer bater nela, tudo bem”. E aí Tamires foi aguentando aí as piadinhas dessa moça racista… — Essa branca cunhada dela, racista. — E aí chegamos ao Natal, onde dona Jacira convidou os pais de Tamires pra passar o Natal lá e, uns dias antes, estava todo mundo ali reunido pra ajudar a fazer as comidas e tal… E aí dona Jacira falou para a nora, falou: “Olha…” — isso na frente da Tamires — “Eu convidei os pais da Tamires pro Natal, eles são meus convidados. Então, fique ciente que qualquer piada que você fizer aqui, eu vou enfiar a sua cara na churrasqueira”. — A dona Jacira ama o Estatuto do Idoso, ela só fala disso… — “Eu estou protegida pelo Estatuto do Idoso”. [risos] — Como se o Estatuto do Idoso defendesse violência, [risos] enfim… — “E se você falar um A, eu vou te bater aqui na frente de todo mundo”. — Dona Jacira falando… —


Os filhos ficaram de cabeça baixa, Tamires ficou em choque [risos] e o Natal foi maravilhoso… Porque essa nora não fez nenhuma piada, dona Jacira estava em cima, né? E, pelo contrário, ela foi super agradável com os pais de Tamires a ponto… — A Tamires já tinha comentado, né? Que às vezes ela fazia alguma piada racista. — A ponto dos pais de Tamires acharem que Tamires estava exagerando, porque ela foi um doce com a família da Tamires. Então, meio que Tamires acha que é uma rixa ali das duas, né? Passou o Natal, passou o Ano Novo, ela voltou… — Essa nora voltou com as piadinhas racistas. — Uma aqui, outra ali, coisas leves, mas racistas, né? E dona Jacira dava bronca… — Mas dar bronca não adianta, gente? Não adianta… — Murilo já não fala com essa nora faz tempo. Desde que começou a namorar Tamires e que rolou essas tretas, o Murilo não fala com ela em hipótese alguma. Não troca um “oi”, nada. 


Inclusive, uma vez Murilo estava indo para casa de carro [efeito sonoro de chuva caindo] e essa nora estava na chuva, indo para casa e ele… [risos] — Eu acho errado, gente, mas tudo bem… Ele passou numa poça e molhou a cunhada. — E aí ela chegou em casa contando e tal e rolou uma tretinha entre os irmãos, mas enfim, eles são irmãos e eles se entendem lá, né? E aí passou o Ano Novo e tal, mais alguns meses e Tamires descobriu que estava grávida. E aí, nossa, uma felicidade, né? [música animada] A dona Jacira, nossa, ficou encantada porque agora “ai, meu neto” ou “minha neta”. — Tanto fazia para ela, mas enfim… Porque a outra nora ainda não tem filho também. — “Ai, vai ser meu primeiro neto, minha primeira neta”, então, assim, dona Jacira estava nas nuvens. E aí essa nora — não se sabe se enciumada ou não — começou a fazer mais piadas… — Mais piadas. —


E aí um dia estava só as três, a Tamires estava de quatro meses e essa nora fez a seguinte piada: [efeito sonoro de voz grossa] “Agora, com o nascimento da criança, esse lado da família — que seria o lado da Tamires — ia clarear um pouco…”. Pela mistura ali da Tamires, que é uma mulher negra retinta, com o Murilo que é branco… — Provavelmente nascerá, porque ainda não nasceu, essa história é muito recente, um bebezinho da minha cor, né? Uma criança parda, enfim. — Nessa hora que essa nora fez essa piada, a Tamires não sabe o que deu nela, ela foi pra cima da nora, jogou a nora no chão e… — O pessoal gosta, né? De jogar essa moça no chão. [risos] — E começou a bater nela. E aí dona Jacira ficou preocupada com a gravidez, né? [risos] E dona Jacira só falava assim: “Tamires, cuidado, se ela encostar na sua barriga você grita que eu tô com a vassoura aqui”. [risos] — Gente, olha… Isso pode dar em… Assim, não deu em nada, mas podia dar uma merda, né? As duas batendo na nora, na moça lá, enfim… —


E aí dona Jacira não precisou interferir porque a moça, enfim, ela é só bocuda mesmo, ela é muito fraquinha pra bater. E aí Tamires bateu nela. — Tamires, grávida de quatro meses, bateu na moça… — Terminou de bater, a moça ficou lá chorando… E aí, dona Jacira ainda falou para ela assim: “Agora você pega o rumo da sua casa, [risos] vai chorar na sua casa. Não vai chorar aqui, não, que eu tenho que socorrer a Tamires”. — E, assim, não precisava socorrer a Tamires, porque a Tamires estava ótima. — Só que assim que a moça saiu, dona Jacira falou: “Pega aí a carteirinha do convênio e vamos pro hospital”. E aí a Tamires falou: “Não, eu estou bem, dona Jacira, não aconteceu nada comigo”, ela falou: “Não, vamos pro hospital”, “não precisa”, “vamos hospital”. [risos] E aí, quando chegaram lá no hospital — pra verificar se estava tudo bem com o bebê e estava tudo bem — Dona Jacira mandou um áudio para os dois filhos falando: “Olha, as duas se pegaram e eu estou aqui no Pronto Socorro com a Tamires porque não se bate em mulher grávida”. [risos] — Dona Jacira é ardilosa, né? [risos] — “E eu estou aqui para ver se ia acontecer alguma coisa”.


Aí Murilo já ficou fora de si, falou: “Se acontecer alguma coisa com meu filho, eu vou matar essa mulher”… — Enfim, quase que a coisa piorou muito, né? — Mas aí a própria dona Jacira botou panos quentes e acabou falando pro Murilo que: “Olha, foi sua mulher que bateu nela. [risos] Mas em todo caso, vamos deixar aí falando que foi as duas que brigaram, né?”. Essa moça ficou um tempo sem aparecer, umas três, quatro semanas e depois voltou pedindo desculpas por tudo e dizendo que não vai mais fazer piada. Bom, já se passaram aí uns dois meses e pouco desde, daqui a pouco nasce aí o bebezinho da Tamires e, até então, ela não fez piada. E agora também, sempre dona Jacira está ali pra lembrar que: “Fez piada, apanhou”. Inclusive, dona Jacira fala isso nos almoços, fala: “Aqui é assim agora. Tamires já pegou o jeito da família. Se ela fizer alguma piada racista, ela vai apanhar”. Então a moça está na dela.


Muita gente falou e falava pra Tamires fazer B.O. e tal, mas eram piadinhas, gente… Eu não quero reproduzir nenhuma aqui, mas assim, não tinha como fazer B.O. ali também… Então, a Tamires sabia que tinha que resolver de outra forma. Ela não achou que ela fosse pra cima da moça, mas quando a moça falou do bebezinho, que nem nasceu ainda, ela, sei lá, perdeu a razão e foi bater na moça. E agora a moça não tem medo de Tamires, porque a Tamires falou: “Eu não tenho uma postura, assim, agressiva com ela, combativa, nada, né? Então ela não tem medo de mim, mas ela tem medo da dona Valdete”, [risos] que é a vizinha idosa que já bateu nela também e falou que toda vez vai bater. Dona Valdete não perdoa. [risos] Tamires também não perdoa, mas fala “bom dia”, “boa tarde”, se tiver na mesa, tiver que passar um prato ali de alguma comida, ela passa, tudo bem assim, sabe? Tamires é muito civilizada. 


Os irmãos não perderam contato, nada, se conversam e tal, só que o Murilo não conversa com essa cunhada de jeito nenhum, de jeito nenhum… Então não tem acordo, assim. A Tamires até evita falar as coisas para ele, porque ele tem ódio… — Ele tem ódio dessa moça. — Então, gente, assim… A única questão pra mim é assim, a coisa não pode virar uma pancadaria, né? Essa moça está assim e, se a coisa piorar, que nem uma vez, a Tamires falou que não ia mais frequentar a casa da dona Jacira, dona Jacira falou: “Olha, se tiver que escolher, vou escolher você. Então aí é ela que não vem mais aqui”, mas aí depois entraram num acordo lá e tal, mas eu acho isso, assim… Qualquer coisa para de ir na casa, dona Jacira que se vire pra afastar essa nora aí, e aí você volta a conviver… O que não pode é ficar nessa de bater, essa pancadaria… Porque daqui a pouco o Murilo vai pra cima dessa moça e aí ele perde toda a razão, né? E aí sim é questão pra boletim de ocorrência que essa moça tem que fazer contra o Murilo.


Então, é bom que as coisas não cheguem nisso, né? E essa é a história da Tamires. O bebezinho está para nascer, a moça parou de fazer as piadinhas racistas… Vamos ver se dá um jeito aí nessa… [risos] Não foi uma surra, foi uns uns tapas lá, né? — O pessoal derruba ela no chão e dá tapa. — Então foi uns tapas, foi um “se liga”, né? Então ela tomou um “se liga” aí pra ver se acorda. Vamos ver, né?

[trilha]

Assinante 1: Oi, Não Inviabilizers, aqui é Ayala de Ribeirão Preto, São Paulo… Assim como o bebezinho da Tamires, eu nasci de um casal interracial e eu sei como é crescer ouvindo piadas de “Ai, que bom que o seu cabelo é bom, porque sua mãe é branca, né? Deu uma melhoradinha no seu cabelo” e isso é muito ruim para a nossa autoestima. Então, que bom que o bebezinho da Tamires tem essa mãe que defende ele da forma que tem que defender e que bom que a sogra dela também defende o neto e a Tamires, porque é muito importante que a parte branca da família se responsabilize por isso e seja aliado nessa defesa aí. Então, eu quero desejar uma boa hora, um bom parto para Tamires, que seja tudo bem e que essa cunhada chata aí pare de encher o saco. Um beijo. 

Assinante 2: Oi, Não Inviabilizers, meu nome é Débora, sou de São Lourenço… Ouvi o “Se liga” achando tudo o máximo, porque o meu episódio preferido do podcast é o Surra… A edição foi fantástica, a história foi fantástica, a trilha sonora foi maravilhosa… [riso] Eu estou dividida em dois lados… O primeiro é de me identificar com a Tamires, de ser uma pessoa que gosta de resolver tudo, se possível, amigavelmente. Posso até ficar com vontade de partir pra cima, mas é muito incômodo ter que chegar nesse ponto. Eu acho que eu só faria alguma coisa se fosse realmente uma situação de alguém ofender uma pessoa muito querida como um filho, que nem foi o caso dela. Mas também acredito que não dá pra confundir a violência do opressor com a reação do oprimido… 

[trilha]

Déia Freitas: E essa é a história da Tamires e dona Jacira, que passou todos os panos [risos] pra Tamires. Mas, gente, não pode resolver tudo assim, ainda mais família, né? Pra acontecer uma tragédia é um pulo… Então, se afasta, acho que a melhor coisa. Corta da sua vida, sabe? E aí dona Jacira que também dá os pulos pra te visitar, ficar na sua casa, enfim. Então é isso, gente, comentem lá no grupo, sejam gentis com Tamires e dona Jacira. [risos] Comentem lá. Se você não tá no nosso grupo ainda, é só jogar na busca “Não Inviabilize” que o grupo aparece. Um beijo e eu volto em breve.

[vinheta] Quer a sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Picolé de Limão é mais um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]
Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.