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título: calado vence
data de publicação: 22/05/2023
quadro: amor nas redes
hashtag: #calado
personagens: lucélia, hamilton e aurélio

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Amor nas Redes, sua história é contada aqui. [vinheta]

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei para um Amor nas Redes. e hoje eu vou contar para vocês a história do Hamilton e do seu Aurélio. — Antes de começar, eu queria dizer como essa história chegou a mim. Semana passada eu postei uma história que foi muito comentada no grupo e alguns argumentos ali que foram colocados era que: “Ah, eles foram criados como irmãos e vivem juntos desde um ano de idade, mas não são irmãos porque não são sangue, não tem o mesmo sangue”, isso é um argumento furado, enfim, não vou entrar nesse mérito aqui, mas depois disso, eu recebi muitos e—mails de pessoas que foram adotadas ou que tem vínculos na família que não são de sangue, mas que se sentem sim pertencentes a mesma família e essa é uma dessas histórias. — então vamos lá, vamos de história.


[trilha]


Hamilton e sua mãe — que a gente pode chamar aqui de Lucélia — viviam só os dois… O pai do Hamilton morreu quando ele tinha três anos e dona Lucélia foi seguindo ali a vida, só ela e Hamilton. Até que quando o Hamilton tinha seis anos, a dona Lucélia conheceu o Aurélio. O Aurélio era um cara muito calado, muito calado, mas ele parecia ser gente fina, assim… Só que o Hamilton ele já vinha ali de uma realidade escolar, ele estava na escolinha para a mãe poder trabalhar, ele ia para creche e tal desde muito novo e ele sempre ouviu ali na escolinha que era importante ter pai… E as crianças comentavam do pai, o dia de festa dos pais, essas coisas… E ele não tinha um pai, né? Então isso era algo que magoava muito o Hamilton, mas ele não pensava que isso fosse possível, tipo, ter um pai, né? Porque ele já lembrava de si mesmo só que sem pai. E aí dona Lucélia conheceu ali o Aurélio e eles começaram um namoro… 


Inicialmente, a Lucélia apresentou o Aurélio para o Hamilton como um amigo e assim foi durante dois anos. Então, dos seis aos oito anos do Hamilton, esse Aurélio ia às vezes lá na casa e ele era o amigo da mamãe… — Sempre muito calado, assim, o Aurélio, né? — E aí agora Hamilton já estava na escola, já tinha oito anos, então tinha dois anos já que ele estava na escola regular e na escola ele sofria muito por não ter um pai. Dona Lucélia ela trabalhava demais, então ela não tinha como faltar no trabalho para ir na reunião de pais e mestres, por exemplo e a escola entendia isso… E não cobrava dela e depois mandava ali as anotações pelo próprio Hamilton, no caderno da escola. Só que a reunião de pais e mestres durava tipo uma hora e as crianças não iam para casa, elas ficavam na aula. Então, o que acontecia? O Hamilton via todo mundo lá, ou com o seu pai ou com a sua mãe, ou com a vó, com a tia, que seja, na classe e ele sozinho.


Na classe dele, ele era o único… — Lógico que na escola toda tinham outras crianças que também os pais não conseguiam ir, mas na sala dele era só ele. — E isso era uma coisa que machucava muito o Hamilton, mas ele ali de criança não conseguia entender muito bem o que ele mesmo sentia. E aí, depois de dois anos, a dona Lucélia falou ali pro Hamilton que ela ia se casar com o Aurélio. [efeito sonoro de sino de igreja] E assim foi feito… O Hamilton achou bacana, mas na cabeça dele ele não pensava — na cabeça de criança — que o Aurélio pudesse ser pai dele. Ele era o marido da mãe, né? E aí o Aurélio começou a conviver ali com o Hamilton, né? Então eles tinham mais ou menos a mesma rotina em casa ali, né? E chegava a noite o menino Hamilton ia fazer ali a sua lição e ele tinha dificuldade… — E a mãe dele, gente, assim, não tem o que falar de dona Lucélia, mulher perfeita que criou Hamilton até os oito anos sozinha, né? Ela chegava cansada do trabalho, ainda ia fazer o jantar, cuidar da roupa, não sei o que lá…. — Ela também não ajudava o Hamilton com lição de casa.


E aí um dia ele estava ali sentado, fazendo a lição de casa na mesa da cozinha, né? E o Aurélio passou e olhou e ele viu ali que tinha um número errado de matemática. E aí ele sentou do lado do Hamilton e falou: “Ó, esse aqui tá errado, esse aqui é isso, isso e isso e aqui você apaga e faz de novo”. E aí ele saiu, pegou ali o copo d’água dele que ele tinha que pegar e saiu… — Sempre muito, assim, na dele, sabe? — E aí o Hamilton falou: “Nossa, ele me ajudou na lição?”, e aí o Hamilton ficou empolgado. Ele terminou, arrumou, foi lá e mostrou para o Aurélio. O Aurélio falou: “Agora tá certo” e só isso, só falou isso. E aí eles tinham essa convivência, assim, eles ficavam muito tempo juntos, mas o Aurélio não falava muito, ele era um homem calado. — Assim, no geral, com todo mundo, não só com o Lucélia e com Hamilton, ele era um homem calado. — E aí um tempo se passou e a próxima reunião de pais estava chegando e sempre vinha anotado no caderno, e agora o Hamilton tinha essa dinâmica de mostrar a lição do caderno pro Aurélio, né? E aí ele mostrou a lição e tal, tinha anotação da reunião e ele foi, fez a lição, beleza…


No dia seguinte, o Hamilton já estava acostumado, [efeito sonoro de crianças contentes] ninguém ia na reunião dele. Então ele ficou ali sentado na carteira, vendo as outras crianças com os pais, com tia, com a avó, enfim… Quando, de repente, na porta da sala do menino Hamilton apareceu quem? Aurélio. Aurélio bateu na porta para entrar e a professora falou: “Pois não? Quem é o senhor? Pai de qual aluno?” e aí ele falou: “Eu sou o pai do Hamilton”. — Quando o Hamilton ouviu… — Ele tinha visto o Aurélio chegar, ficou meio sem entender, o Aurélio falando: “Eu sou o pai do Hamilton” ele sentiu uma emoção… Ele disse assim para mim: “Andréia, eu era muito criança, eu não consegui identificar que eu estava emocionado. Eu estava com uma vontade de chorar, mas era uma vontade de chorar boa, mas eu segurei…”. E aí ele foi, entrou… O Aurélio foi, entrou, sentou ali e falou “oi” para o Hamilton, sentou do lado do Hamilton e ficou ali na reunião. E dona Lourdes, que era sempre a professora que fazia a reunião da turma ali do Hamilton, percebeu que o Hamilton estava emocionado, né? Porque ela percebia como ele ficava triste. 


E aí, quando acabou a reunião, que as crianças saíam para o recreio, né? Os pais iam embora e as crianças saíam para o recreio, o Hamilton ficou ali sentado, deu tchau pro Aurélio e tal, o Aurélio foi embora e o Hamilton ficou ali sentadinho na carteira. E aí a professora Dona Lurdes foi lá perto dele… — [voz embargada] Eu já quero chorar… — E aí Dona Lurdes falou assim para ele, viu que ele estava com o olho enorme, assim, marejado e falou pra ele: “Pode chorar, filho, pode chorar. Agora você tem um pai”. E aí o Hamilton teve uma crise de choro que ele não sabia explicar o que ele estava sentindo, mas era algo bom. E aí, dona Lurdes — Professora Lurdes — ficou ali com ele até que passasse aquela, aquele choro e tal. E aí ele foi, lavou o rosto, ela foi com ele no banheiro, lavou o rosto e ele foi para o recreio brincar com as crianças e passou… E naquele dia da reunião, a dona Lurdes tinha falado que tinha algumas crianças que iam para casa sozinhos, se tinha alguns pais que podiam ir junto… — Porque a maioria ia a pé para a escola e os pais também não tinham carro e tal… — Porque tinha um boato circulando de assaltos ali na região e tal. 


E aí quando deu o horário de saída do Hamilton, quem que estava lá esperando pra ir a pé com ele? Aurélio. [música suave] Aurélio remanejou o horário de trabalho dele, Aurélio trabalhava numa padaria como padeiro e aí ele saía muito cedo, fazia os pães tipo, sei lá, quatro horas da manhã, cinco horas da manhã… Quando era mais ou menos a hora do almoço, meio dia, ele levava o Hamilton pra escola e, quando o Hamilton saía, cinco horas, cinco e meia, ele tava lá pra pegar o Hamilton. — Hamilton muito criança, não sabia como ele remanejou os horários, mas ele manejou… — E nesse primeiro dia que ele foi buscar o Hamilton, era cinco e pouco, o Hamilton saiu e o Aurélio estava lá e ele falou: “E aí, “vambora”, né?”, muito calado, muito calado… E aí, andando um do lado do outro, o Hamilton levantou a mãozinha e pegou na mão do Aurélio. E aquilo virou um símbolo deles, assim… Então, toda vez que ele ia levar ou buscar, eles iam de mãos dadas. E isso era muito importante para o Hamilton, assim, poder ir de mãos dadas com um cara agora que falava para todo mundo que ele era o filho… 


E Hamilton tem memórias muito boas, assim, do Aurélio. Ele lembra uma vez que ele estava voltando da escola com o Aurélio e uma vizinha parou ele para falar do casamento da Lucélia, ela falou assim: “Vocês não vão ter filhos?”, e aí o Aurélio virou para ela e falou: “Mas eu já tenho um filho, olha ele aqui… Eu já tenho um filho, tá bom um filho só, para a gente poder criar bem e poder dar as coisas. Um filho só tá bom”. E ali também o Hamilton falou: “Poxa, ele tá falando de mim…”. [risos] Ele até olhou em volta para ver se não tinha outra criança [risos] e falou: “Não, sou eu… O filho que ele está falando pra vizinha que ele tem, sou eu”. E a partir desse momento, sem pedir, o Hamilton começou a chamar o Aurélio de pai. E aí o tempo foi passando, o Hamilton foi crescendo, o Aurélio sempre um pai muito presente, levava e buscava na escola, ia nas reuniões, ia em festa de Dia dos Pais, fazia aniversário para o Hamilton… No dia do aniversário do Hamilton levava ele para passear… 


Ele, um padeiro, fazia questão que o Hamilton estudasse, estudasse muito e, quando Hamilton queria um livro, um livro de colorir, um livro de historinha que fosse, ele dava um jeito e comprava… — Porque ele achava muito importante que o Hamilton tivesse livros. — E assim o tempo foi passando… Ele foi crescendo… Quando o Hamilton teve a primeira namorada, contou para ele, ele ficou em silêncio e depois foi lá explicar para o Hamilton, em poucas palavras, o que ele devia fazer, o que ele não podia fazer com uma moça, que tinha sempre respeitar a vontade da moça e deu uns preservativos pra ele… — Ele já tinha uns 16 anos, né? E explicou. Explicou tudo, gente… — Mas sempre, assim, com poucas palavras, mas muito afeto. Afeto no olhar, afeto no jeito de falar, mas sempre pouquíssimas palavras. Calado. Quando Hamilton se formou no ensino médio, o Aurélio deu uma camisa muito bonita branca pra ele, assim, social, para ele usar no dia do evento. E ele e Lucélia foram na formatura… Era uma formatura de escola pública, né? Era na escola mesmo ali, só uma comemoração assim para dizer que não passou em branco, né? E aí foi a primeira vez que, de onde ele tava, ele viu o Aurélio chorar. 


E depois dona Lucélia contou para ele um dia que o Aurélio sempre chorava… Sempre que ele se emocionava com o Hamilton, ele chorava… — Escondido, mas ele chorava. — E ele tinha um amor pelo Hamilton… — E, assim, gente, aqui eu não estou falando da Lucélia, porque a gente está focando na história de pai e filho, né? Mas ela também era uma mãe ótima, presente e tal. — Mas, por exemplo, quando o Hamilton ficava doente e, gente, mãe tá acostumada com o filho doente, ficar com febre, cai, dor de dente… A mãe ela lida melhor, né? — E o Aurélio, como pai, ele não conseguia nem trabalhar. Ele ligava na padaria e falava: “Hoje eu não posso ir porque meu filho está doente” e a Lucélia falava: “Olha, ele já está medicado, ele tá bem, ele tem 13 anos, ele pode ficar aqui sozinho e depois a gente liga para saber como ele tá”, não… O Aurélio ele ficava em casa com o Hamilton porque a Hamilton estava doente. Era assim: “Meu filho está doente”, pronto, acabou o mundo.


O Hamilton cresceu — depois aí desses oito anos — com um pai muito presente, que ele chamava de pai, que nos documentos e tal não era o pai dele de fato, né? Mas era o pai dele, de afeto, de convivência e de tudo… — E aí, como é que alguém agora vai dizer que eles não são sangue? Não é pai e filho? Olha essa relação, gente… Quem se atreve a dizer que ele não é pai? Que Aurélio não é pai de Hamilton? Percebe? — Bom, o tempo passou, Hamilton conheceu uma moça… — Que a gente pode chamar aqui de Ana… Depois de dois anos de namoro, eles resolveram se casar… [efeito sonoro de sino de igreja] — Casar na igreja, fazer festas, assim, tudo, né? — E aí, para entrar na igreja, ele ia entrar com a mãe, né? O Hamilton. E aí ele foi lá e pediu para o Aurélio entrar também junto com ele… E o Aurélio ali, calado, sentado no sofá, falou: “Tá bom”. Só um “tá bom” assim… E aí saiu, foi pra cozinha e aí depois ele foi pra cozinha e pegou o Aurélio chorando na cozinha, [risos] emocionado porque o Hamilton tinha convidado ele para entrar na igreja como pai, né? Pai e mãe. E foi assim que ele entrou na igreja pra casar. 


Mais um tempo se passou, Ana engravidou e teve um menininho. E aí, quando Lucélia e Aurélio foram conhecer ali na maternidade, o menininho, o Aurélio já estava todo emocionado, todo sem jeito, muito calado, né? E aí o Hamilton virou pra ele e falou: “Pai, sabe o nome?”, ele falou: “Não, que nome vocês escolheram, né?”, aí ele falou: “Aurélio” e aí ele falou assim só: “Ah, muito bem…” e saiu do quarto. [risos] E aí o Hamilton saiu atrás dele e ele tava se acabando de ali chorar no corredor… E aí o Hamilton foi e abraçou ele, ele choraram juntos ali, abraçados, [voz embargada] por aquela nova presença, o pequeno Aurélinho. [risos] E Aurélio e Hamilton eles se gostavam tanto que quando o Hamilton casou, ele alugou uma casa na mesma rua porque ele não conseguia ficar longe do pai. Eles faziam tudo juntos, assim, né? E aí, quando Aurélinho estava ali com seus seis para sete anos, um dia o seu Aurélio foi dormir e não acordou… 


Morreu dormindo e foi um baque para a família toda, porque ninguém esperava. Ele estava, aparentemente, saudável, mas ele teve um infarto fulminante e morreu. E Hamilton diz que não tem um dia que ele não sofra de saudade do pai, que foi tudo para ele. Ele falou: “Andréia, tem a minha vida de criança antes do meu pai e a minha vida 800% melhor depois do meu pai… E eu não conseguia imaginar uma vida sem ele, como eu tenho agora, só ele na lembrança”. Então, essa é uma história de pai e filho e quero ver quem aí tem coragem de dizer que Seu Aurélio não foi pai de Hamilton. Foi o único pai que Hamilton conheceu ali depois dos 8 anos, né? Porque ele acabou não conhecendo direito o pai dele, que morreu quando ele era muito criança.

E essa é a história deles… Uma história de pai e filho, de muito amor, de muito companheirismo e o Hamilton se dá muito bem com a mãe também. Dona Lucélia depois não se casou mais, também sente muita falta do seu Aurélio, que sempre foi muito, muito, muito calado, mas muito amoroso com todo mundo… Aquele cara que percebe se você está bem, se você não está e se você não está bem daqui a pouco ele tá lá te dando um copo de suco, sabe? Do nada, assim… E demonstrando afeto pra você sem falar muito. Assim era o seu Aurélio… E essa é uma história de pai e filho, onde não há o mesmo sangue envolvido, mas o mesmo afeto, o mesmo amor e, enfim, um laço muito, muito, muito profundo. 

[trilha]

Assinante 1: Oi, Déia, oi, Não Inviabilizers, aqui é o Mark, um cearense que vive em São Paulo. Meu Deus, essa história me pegou num ponto muito delicado da minha história, porque eu cresci com meu pai, diferente do Aurélio, eu cresci com meu pai dizendo que eu era o herói da vida dele, a coisa mais importante da vida dele. Hoje meu pai não fala comigo já tem três anos pelo fato de eu ser um homem gay, ele não aceita isso… Por mim tanto faz ele aceitar ou não, desde que ele me respeitasse, mas além de ele não aceitar, ele não me respeita. Ele pediu para eu procurar um cartório, retirar o nome dele da minha certidão, porque eu era uma total vergonha. E mexe muito comigo… Imagina você passar sua vida, infância e adolescência achando que você é o amor da vida do seu pai e descobrir que, na verdade, não. Fiquei muito feliz, muito emocionado e com uma pontinha de vontade de ter um padrasto maravilhoso também. 

Assinante 2: Oi, Déia, oi, pessoal, eu sou a Letícia e queria falar que a história Calado me tocou de uma maneira muito especial e diferente. Eu sou professora e a gente que é professor sabe que não estamos ali apenas para ensinar, a gente também está ali para acolher nossos alunos em momentos de vulnerabilidade, de tristeza, de alegria… E fiquei muito emocionada ao ver como o Hamilton lembrou com carinho da sua professora… E eu espero um dia ser lembrada assim por um aluno meu, porque essa é a maior conquista que a gente pode ter. E também queria falar que a história é muito linda, era tudo o que eu precisava no dia de hoje para me dar força pra entrar na sala de aula e também para ver como que um nome no documento não significa nada perto do amor que a gente cultiva, que a gente cria pela pessoa e nossos laços. Um beijo para todos. 

[trilha]

Déia Freitas: Então é isso, gente, um beijo… Eu fiquei aqui toda entupida, toda chorosa e eu volto em breve.

[vinheta] Quer sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Amor nas Redes é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]
Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.