título: fogo
data de publicação: 01/06/2023
quadro: picolé de limão
hashtag: #fogo
personagens: thamires, dona julieta e seu pai
TRANSCRIÇÃO
[vinheta] Picolé de Limão, o refresco ácido do seu dia. [vinheta]Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei pra mais um Picolé de Limão. — E, assim, pra começar eu nem ia contar essa história, porque eu acho que ela tem uma zona cinza muito pesada. Mas ontem, conversando com uma moça no Twitter, ela me contou uma história que tinha algo parecido com essa, ainda mais pesada. Então eu falei: “Bom, a minha, a história que eu recebi lá no podcast é mais leve que essa, então acho que vou contar” e é isso, assim… — Eu vou contar para vocês a história da Thamires. Então vamos lá, vamos de história.
[trilha]A Thamires cresceu num lar muito amoroso, com o seu pai e com sua mãe — que a gente pode chamar aqui de Dona Julieta — e ela cresceu muito, mas muito amada, muito feliz e uma família ótima… Estudou, se formou, fez faculdade e, quando ela terminou a faculdade, ela conseguiu um emprego no Mato Grosso. — A gente está falando aqui de uma época antes do celular, né? Tem gente aqui que me ouve que não era nem nascida nessa época, mas sim, a gente viveu aí muito tempo sem celular, a gente tinha bip, a gente tinha telefone fixo… [risos] Às vezes numa rua só uma pessoa tinha telefone fixo, então todas as pessoas usavam aquele telefone. Então é basicamente isso dessa época. — E Thamires ela tinha um telefone na casa, alguns vizinhos não tinham e se utilizavam desse telefone. — Era comum na época, aqui na minha rua também era assim, enfim, todas as ruas eram assim. Uma pessoa que tinha um pouquinho mais de dinheiro, que conseguia parcelar uma linha de telefone na Telefônica, que as linhas de telefone eram bem. Era como se fosse um terreno, era isso… E aí as outras pessoas, que não tinham grana, se utilizavam desse telefone para falar com parente… Uma coisa muito rápida também. —
Os pais que tinham o telefone e tal, e ela foi trabalhar no Mato Grosso. Isso ela já estava ali com os seus 30 anos e os seus pais estavam aí na casa dos 60, o pai dela ali com 64, a mãe dela com 63. Qual era a rotina de Thamires no Mato Grosso? Ela trabalhava lá numa empresa de engenharia florestal e conversava com os pais somente no domingo, porque de sábado ela trabalhava ali ainda até meio dia, e aí ela ia fazer as coisas enquanto a cidade estava aberta, sábado ficava aberto as coisas ali mais ou menos até umas três, e depois ia pra casa fazer as coisas e, no domingo, que ela estava tranquila, ela telefonava para conversar com o pai e com a mãe. Aí conversava um pouquinho com o pai e ficava conversando mais com a dona Julieta, né? Que era a sua mãe, mas mesmo assim, o telefone era caro, enfim… Depois que Thamires já estava nesse emprego ali há uns oito meses, — então ela não tinha férias ainda, não tinha como ela ir pra casa, né? — ela ligou um domingo e não conseguiu falar com a mãe, que a mãe tinha ido na casa da tia.
Falou: “Bom, pai, deixa aí um recado pra mãe e nã nã nã”, na semana seguinte ela não conseguiu falar com a mãe, porque a mãe tava numas coisas da igreja, ia ter procissão e tal… “Poxa, duas semanas já sem conseguir falar com a mãe… Ô, pai, fala pra ela e tal que eu vou ligar domingo que vem tal hora, pra ela estar, né? Poxa…”. Aí o pai falou: “Ah, filha, tá bom, eu vou ver, mas é que tá corrido por aqui”. Na terceira semana que ela ligou, o pai dela não atendeu… [efeito sonoro de suspense] e aí ela ficou preocupada, mas não tinha o que fazer. Na segunda-feira, quando ela chegou para trabalhar, já tinha um recado, dizendo que era um recado ali do pai e da mãe, que estava tudo bem, que eles tinham saído pra ir num rancho lá, que eles iam de um amigo e que só podia ir naquele final de semana, então eles não conversaram… Então aí já foi três semanas sem falar com a mãe.
No quarto domingo a Thamires falou: “Pai, cadê a mãe? Eu quero falar com a mãe”, “Ah, filha, ela foi de novo na casa da sua tia” e era estranho, porque a dona Julieta era muito, muito, muito apegada a Thamires. Por que que ela não estava atendendo o telefone, né? E aí Thamires ficou cabreira, as vizinhas que ela podia falar, eram vizinhas que não tinham telefone e mesmo assim ela pediu para o pai, falou: “Ô, pai, chama aí a dona Vanda, que eu quero falar com a dona Vanda”. Aí o pai falou pra ela assim: “Ah, mas eu vou ter que ir lá chamar a dona Vanda?” e a Thamires ficou brava no telefone e obrigou o pai a chamar a dona Vanda. A dona Vanda veio, falou: “Oi, filha, como estão as coisas por aí? Você tá bem? Como está seu trabalho?”. E aí, Thamires falou rapidamente e falou: “Dona Vanda, cadê minha mãe?”. — E aí dona Vanda ficou muda no telefone… —
Aí dona Vanda falou assim para ela: “E as roseiras, filha? Você já aguou as roseiras?” e aí a Thamires falou: “Que roseiras, dona Vanda, que roseiras?”, “Ah, precisa aguar todo dia, precisa ver de perto, né? Precisa ficar perto” e aí a Thamires falou: “O meu pai tá aí do lado? Você não está podendo falar? Que é, dona Vanda?”, “Ah é, precisa ficar perto, ficar de olho, senão morre, né?”. E aí a Thamires falou: “Minha mãe está correndo perigo? Está acontecendo alguma coisa?”, “Ah sim, é, fica de olho… Fica de olho, sim… É, porque elas crescem rápido, né? Mas se não olhar, morre”. E aí a Thamires falou: “Tá bom, dona Vanda”, desligou o telefone, foi falar lá com o chefe dela e falou: “Está acontecendo alguma coisa na minha casa, eu preciso voltar”. E aí o chefe falou: “Olha, não deu seu tempo ainda, não posso pagar uma passagem para você voltar assim e tal”. Aí ela falou: “Tudo bem, então eu quero minhas contas”.
E aí, Thamires, sem saber o que estava acontecendo com a mãe dela, pediu demissão e voltou do Mato Grosso para a cidade que ela morava. — Era uma quarta-feira de manhã, o pai dela, que já era um senhor, estava aposentado, o casal era aposentado, tomou um susto… Ele estava na cozinha fazendo ali um café quando Thamires chegou e Thamires já chegou falando: “Pai, cadê a mãe?”. Enquanto Thamires estava falando: “Pai, cadê a mãe?”, uma mulher, mais ou menos da idade da Thamires, 30 e poucos anos, saiu do quarto do casal. — Quem era essa mulher? — Thamires olhou, olhou para o pai, falou: “Pai, o que está acontecendo? Quem é essa?”. O pai simplesmente virou para Thamires e falou: “Não é da sua conta, a casa é minha, eu trago aqui quem eu quiser”. Onde estava dona Julieta? Cadê dona Julieta? A Thamires começou a gritar, começou a jogar coisa, derrubar coisa e o pai dela falou: “Você pode espernear”, a moça voltou para o quarto… Thamires saiu e foi conversar com a dona Vanda. — O que aconteceu? — A dona Julieta passou mal um dia, chamaram uma ambulância e ela nunca mais voltou…
Dona Vanda perguntava todo dia para o pai da Thamires e o pai da Thamires não falava nada, não respondia… E depois de mais ou menos uns dez dias que Dona Julieta tinha desaparecido, o pai trouxe essa moça nova para morar na casa e ela estava morando desde então com o pai de Thamires. Thamires só chorava, chorava, chorava, chorava… E Dona Vanda falou: “Mas assim você não vai conseguir, você tem que procurar nas coisas dele algum papel, ou um atestado de óbito ou algum lugar que ele botou sua mãe, porque ela saiu daqui passando mal, mas a gente não sabe o que aconteceu”, a vizinhança inteira não sabe. Thamires tomou uma água ali na casa de Dona Vanda e voltou pra casa. Ela sentou ali na cozinha, o pai tinha voltado para o quarto com a moça, ela tomou café e saiu… Saiu e, assim, saiu meio que sem rumo, porque ela falou: “Bom, eu vou na delegacia? Dou parte do meu pai? E se ele não contar?”, enfim… E aí ela andou um pouco pela cidade, fazia tempo que ela tinha saído, quase nove meses e tal, esfriou um pouco a cabeça… Thamires fez umas compras ali na cidade, voltou para casa, escondeu as compras na garagem e foi pro quarto dela. Esperou anoitecer…
Thamires ouviu uma movimentação na cozinha, provavelmente o pai e a nova esposa, namorada, estavam jantando algo assim… Ele também não chamou a Thamires e, quando foi mais ou menos umas nove da noite, eles foram para o quarto do casal — que seria o quarto também da mãe de Thamires, dona Julieta —, fecharam a porta e aí Thamires saiu para cozinha e foi comer alguma coisa também e ficou ali pela casa, até mais ou menos uma da manhã. Quando foi uma da manhã, Thamires apagou todas as luzes, foi até a garagem, pegou as coisas que ela havia comprado, levou para a cozinha, fez ali o que ela queria fazer e foi para o quarto do pai… Chegando no quarto do pai, Thamires, que é quem me escreve, despejou um líquido sobre o pai [efeito sonoro de tensão] e a nova esposa dele e despejou o líquido em si mesma e acendeu a luz… O pai assustado, a moça assustada, Thamires encharcada bloqueando a porta de saída. Thamires falou para o pai assim: “Se você não me falar agora onde está a mamãe, eu vou riscar esse fósforo e nós três vamos morrer queimado aqui”. O pai ficou desesperado, tentou ir na direção dela, ela falou: “Se você chegar mais perto, eu vou riscar esse fósforo”.
A moça, namoradinha do pai, só gritava, gritava, gritava… E o pai, ouvindo aqueles gritos e ouvindo a Thamires gritar: “Onde está minha mãe? Onde está minha mãe?” com a caixa de fósforo na mão, gritou o “Casa de Saúde Santa Marcelina”. — Eu estou inventando um nome aqui, tá? — Thamires saiu do quarto e falou: “Eu espero que minha mãe esteja realmente nesse lugar, porque se ela não tiver, eu posso não botar fogo em vocês hoje, vocês podem se mudar daqui, mas eu vou atrás de vocês e eu vou botar fogo nos dois. É uma promessa, não é uma ameaça… É uma promessa. Se eu não encontrar minha mãe nessa casa de saúde, eu vou botar fogo em vocês dois”. Thamires, toda encharcada, saiu do quarto do pai ali e foi para o quarto dela, tremendo, tremendo… Então ela já tinha um nome: “Casa de Saúde Santa Marcelina”. Era quase duas da manhã, ela se secou, vestiu uma roupa e saiu para encontrar a mãe.
Ela pediu um táxi ali na cidade dela, chegou na Casa de Saúde, que era mais ou menos umas dois horas de distância, quase amanhecendo e esperou… Ficou lá na frente até dar seis horas da manhã, começar uma movimentação e ela entrou e disse que era filha de dona Julieta, que queria ver a mãe e que não sei o que… Dona Julieta estava sendo mantida nessa casa de saúde contra a vontade dela, porque ela falava: “Eu já estou bem…”, ela tinha tido um pequeno AVC. Só que a casa de Saúde, era uma casa de saúde particular, que estava sendo paga com a aposentadoria de dona Julieta. E aí a clínica falava que precisava da assinatura do marido para liberar a Dona Julieta e ninguém deixava nem ela usar o telefone. Assim que Thamires conseguiu ver Dona Julieta, ela se abraçaram muito, choraram e aí dona Julieta foi contar tudo para ela e a Thamires que já estava naquele clima, né? Praticamente aqueles filmes de aventura que a pessoa explode tudo, ela falou a mesma coisa na clínica… Falou: “Bom, eu posso chamar a polícia, eu posso botar fogo nesse lugar, mas eu vou sair daqui com a minha mãe agora e eu quero o cartão da aposentadoria dela”, porque eles estavam com o cartão do banco da aposentadoria dela…
E aí, depois de fazer um escândalo lá e muita ameaça, ela pegou as coisas da mãe, os documentos, o cartão e chamou um táxi para voltar para casa. — Você lembra que eles tinham um telefone em casa, né? — Da clínica ela ligou para o pai e avisou, falou: [efeito sonoro de som via telefone] “Estou voltando com a mamãe, se eu te encontrar aí junto com aquela…” e falou aí um nome feio “eu vou botar fogo em vocês… Ainda assim, agora que eu achei minha mãe, a promessa mudou. De qualquer forma, se eu encontrar vocês de novo pela frente, eu vou botar fogo em vocês”. E isso ela falando gritando no telefone lá na clínica. — Então, quer dizer, né? Fogo… [risos] Thamires é fogo. — Elas chegaram em casa, o pai já não estava mais, as coisas dele no armário já não estavam mais e ele sumiu no mundo. Nunca mais apareceu. — Elas conseguiram achar ele? Conseguiram, porque ele recebe aposentadoria e tudo… Se elas tivessem feito uma queixa, alguma coisa, mas não fizeram. — E esse homem nunca mais apareceu…
Dona Julieta jamais imaginou que o marido tivesse uma amante. Ele sempre foi um bom pai, um bom marido… E, assim que a Thamires viajou, foi morar em outro estado, esse homem mudou… Esse homem mudou, virou outro homem, começou a tratar dona Julieta mal… Ela foi ficando nervosa, nervosa, nervosa e acabou tendo um pequeno AVC. E depois que ela estava bem para sair do hospital, que era coisa de uma semana, ele não levou ela para casa, ele levou ela para essa clínica e internou Dona Julieta, como se ela fosse uma pessoa louca e ela passou maus bocados aí nessa clínica, que a clínica também não era das mais honestas, né? E agora vem um detalhe: Thamires saiu, aquele dia que ela chegou para fazer compras, e o que ela comprou? Thamires comprou um galão de água e algumas pedras de cânfora. O que ela jogou no pai e em si mesma, foi água com cânfora. Então, não era álcool. [risos] Foi horrível, hein, Thamires? Foi horrível. Foi horrível…
Porque, assim, você está todo molhado ali, sentindo aquele cheiro que a cânfora dá, do ardidinho do álcool também, aquele fundinho do álcool de limpeza…. Você fala: “Pô, eu vou queimar aqui, porque acender o fósforo ali, todo mundo ia morrer”, mas a Thamires, que não era boba nem nada, fez uma mistura aí de água com cânfora. [risos] Cinco litros de água… Um galão de cinco litros e despejou no pai, na namorada do pai e em si mesma… E não era álcool. Por que ela escreveu para a gente? Primeiro que, óbvio, o que o pai fez, pelo amor de Deus, erradíssimo… Mas ela queria saber de vocês, se a atitude que ela teve de jogar essa mistura… Porque o que vale é a intenção, né? Todo mundo achou que era álcool. Inclusive vocês, enquanto eu estava contando, né? Mas não era… [risos]
E essa é a zona cinza, porque ela teve uma atitude extrema, né? Você teria uma atitude como a da Thamires assim? — Certo não é o que ela fez, mas ela estava desesperada para encontrar a mãe. — Talvez se ela não tivesse uma atitude extrema assim, o pai não contasse, né? Ia demorar para ela achar… Ela provavelmente achar, porque ela podia fazer um boletim de ocorrência… Eles iam levantar quem está recebendo a aposentadoria dela, né? Da dona Julieta. Ia achar? Ia achar, mas ia ser um processo diferente, um processo mais longo, né? Então, essa é a história da Thamires, que escreveu para a gente pra saber aí se vocês teriam essa coragem.
[trilha]Assinante 1: Oi, gente, oi, Déia, aqui é a Jéssica do Rio. Thamires, quero andar contigo no recreio, tu é braba… Tu é braba. Espírito de confusão, espírito de lendária. Remédio pra maluco é um maluca e meio… Sumiu com a tua mãe, quis botar a banca pra cima de você? Fez o certo, fez o certo. Imagina se você não volta? Sua mãe vai ficar sumida por aí e ele com outra dentro de casa… Não… E pior, podia ter feito alguma coisa muito pior com a sua mãe… Correta. Meu pano tá aqui na mão, sempre que tu precisar, eu tô aqui passando pano pra você. Beijão, gente.
Assinante 2: Oi, Déia, oi, Não Inviabilizers, aqui a Mallu falando de Belo Horizonte. Se a história da Tamires fosse um filme, ô, fi, não… Ia ganhar um Oscar. Na hora. Fernanda Montenegro ali até sentindo o gostinho de reparação histórica. Teve suspense, teve drama, teve ação, rolou de tudo nessa história… E apesar da história tá numa zona cinza, se a minha mãe sumisse na face da terra do nada, eu ia fazer a mesma coisa. Acho ainda que a Thamires fez muito, botou o pessoal pra correr ainda… Eu estou 100% Thamireszada.
[trilha]Déia Freitas: Enfim… [risos] Olha, não vou falar aqui que julgarei Thamires, não julgarei. É isso… Comentem lá no nosso grupo do Telegram, sejam gentis com a Thamires. Um beijo e eu volto em breve.
[vinheta] Quer a sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Picolé de Limão é mais um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]