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título: flores brancas
data de publicação: 02/11/2023
quadro: picolé de limão
hashtag: #flores
personagens: damiana e cleide

TRANSCRIÇÃO

Este episódio possui conteúdo sensível e deve ser ouvido com cautela.

[vinheta] Picolé de Limão, o refresco ácido do seu dia. [vinheta]

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei pra mais um Picolé de Limão. — Essa história, já aviso aqui, ela tem gatilhos de violência doméstica, então ouçam com cuidado. — E hoje eu vou contar para vocês a história da Damiana. Então vamos lá, vamos de história. 

[trilha]

Essa história ela é ambientada nos anos 70, quando Damiana conheceu aí um rapaz. Damiana, de família muito pobre, esse rapaz também de família pobre, mas com um pouco mais de condição que a família de Damiana, ela conheceu esse rapaz e eles resolveram aí se casar. [efeito sonoro de sino soando] — Na época para casar, como agora também, tem um custo… — Então o rapaz convenceu a Damiana — o que não era o sonho dela, ela queria realmente se casar, se casar na igreja, casar no civil, mas ele convenceu aí a Damiana — de que o melhor é que eles fossem morar juntos, né? E assim Damiana aceitou… Um dia ele falou para Damiana arrumar as coisas, a Damiana morava com os pais e mais cinco irmãos, arrumar as coisas que eles iam embora… E Damiana saiu de casa, deu tchau para a família e foi morar com esse cara em outro estado. 

E para onde que Damiana foi? Damiana foi para o que, na época, chamavam de “cortiço”. Era uma espécie de um casarão, assim, e cada cada quarto foi transformado como se fosse uma kitnet, assim… — Só que não tinha banheiro, você tinha que usar o banheiro comum ali do andar daquela habitação e essa era a nova casa agora da Damiana. — Conforme Damiana foi convivendo com este homem, a primeira coisa que aconteceu foi que ela percebeu que, apesar do cara ter um pouquinho mais de condição financeira que a família de Damiana, ela tinha saído da casa dela para pior, porque na casa dela ali, ela, os cinco irmãos, a mãe e o pai, todos trabalhavam, então eles conseguiam se manter, né? E, a partir do momento que ela se mudou para esse lugar — para esse novo lugar —, o cara não deixava que Damiana trabalhasse e ele trazia muito pouco dinheiro para casa. 

Ou melhor, ele não dava dinheiro na mão de Damiana, porque a Damiana ela não podia sair daquele quarto. Então, ele que trazia a comida e eles tinham tipo um fogãozinho, uma boca de fogão, assim, com o bujãozinho, onde ela tinha que se virar para preparar a comida, né? E ele trazia muito pouca comida, o que dava a se entender que ele comia na rua e às vezes ele trazia até restos de comida para Damiana e ela se via presa naquele quarto o dia todo. Ela não sabia no que esse homem trabalhava… — Era uma outra época, né? A gente está falando uma história que tem 50 anos, praticamente. — E assim Damiana foi passando os dias… Tinha dia que esse homem chegava bêbado, tinha dias que ele dava uns tapas, ele batia na Damiana… E um dia, Damiana tinha passado a noite toda em claro com medo de ser morta por esse homem, porque ele chegou bêbado e chegou agressivo e ela chorou muito… 

E as paredes ali daquela habitação — que eu não vou chamar aqui de cortiço —, as paredes daquela habitação eram muito finas… E aí de manhã ele saiu para trabalhar e, quando foi mais ou menos umas nove horas da manhã, a Damiana ouviu a chave na porta. — Só que, assim, se ele estava voltando nove horas da manhã pra casa, ele tinha sido mandado embora ou alguma coisa tinha acontecido e ia sobrar para Damiana. Então, ela já se encolheu, assim, já ficou tensa, esperando o que ia acontecer. — A porta se abriu… — Damiana nessa época tinha seus 19 anos… — A porta se abriu e entrou para dentro daquele quarto uma jovem… E essa jovem devia ter mais ou menos seus 18, 20 anos também, a mesma idade de Damiana. E essa jovem estava com a chave dali, daquela porta… E aí ela se apresentou pra Damiana, ela falou: “Meu nome é Cleide e eu trabalho aqui, eu trabalho pra dona desse casarão e eu faço a limpeza aqui e eu tenho a chave de todos os quartos… Eu moro no andar de cima e eu ouvi você chorando a noite toda e já tem tempos que eu quero vir aqui… Hoje eu tomei coragem e vim”. 

E aí, ao mesmo tempo que a Damiana ficou feliz de ver alguém, ela ficou muito preocupada, porque se o marido dela ficasse sabendo daquilo, ela ia no mínimo apanhar, né? E aí a Cleide veio e falou: “Fica sossegada, eu já segui o seu marido, eu já sei onde ele trabalha e ele não pode sair agora, ele não vai sair agora. Então, se você quiser sair do quarto agora, dar uma volta, fazer alguma coisa, vamo”. E aí a Damiana ficou com muito medo, com muito medo de sair daquele quarto… E, ao mesmo tempo, ela queria muito sair… — Porque ela tinha mudado de estado e ela não sabia nem onde ela tava. — E aí a Cleide falou pra ela: “Você tá no Rio de Janeiro, a gente tem que passear”. E aí, Damiana tomou coragem e, de onde elas tavam, elas saíram… A Cleide falou: “Não se preocupe, eu sei que você não tem dinheiro” e elas pegaram um ônibus, rodaram mais ou menos uma hora e foi a primeira vez que a Damiana viu o mar… — Porque, assim, ela sabia que existia o mar, mas nunca tinha visto. Tinha vista em revista… Nem TV, porque era uma época que eles não tinham TV, né? Pelo menos a família da Damiana, que era mais pobre, não tinha. E ela tinha pouquíssimo acesso realmente as coisas de onde ela veio. —

E aí ela ficou encantada com o mar, assim, que ela ficou emocionada… E a Cleide ali, olhando e dando risada e falando: “Vamo ali, vamos fazer isso, fazer aquilo, pisa na areia” e elas ficaram aproximadamente três horas fora daquele casarão e voltaram. E a Damiana teve todo o cuidado de limpar a areia, limpar as coisas pra não parecer… E aí a Cleide mostrou pra ela, falou: “Olha, eu estou bem aqui, se você bater com a vassoura bem aqui nesse cantinho aqui em cima, você vai bater no meu quarto. E aí eu posso vir aqui, eu posso te ajudar, o que você precisar”. E assim nasceu a amizade da Cleide com a Damiana. E o tempo foi passando, elas estabeleceram uma amizade… A Cleide percebeu que a Damiana estava muito magra, e aí a Cleide começou a trazer comida também. — Comida pronta já, né? Pra Damiana. — E, ao mesmo tempo que ela mostrava as coisas para Damiana, levava pra passear às vezes na praça da esquina, ela também dizia para Damiana que a Damiana tinha que sair daquele relacionamento, que ela tinha que largar aquele homem. 

Só que na cabeça da Damiana era assim: “Ele é meu marido, como é que vai ser isso?”. E aí a Cleide começou a perguntar: “Mas onde vocês casaram? Que papel que você assinou?” e ela falou: “Não, eu não assinei nada”, “Então você não é casada com ele, você pode ir embora a qualquer momento” e a Damiana ficou com isso na cabeça… Só que para onde ela ia embora? Ela não tinha como ir embora. E aquele homem horrível chegando cada dia mais violento, cada dia mais bêbado… Até que um dia a Cleide teve uma ideia… — A Cleide que cuidava ali, limpava aquele casarão e cuidava das coisas para a dona, porque a dona tinha outros casarões. Inclusive, Cleide disse que ela tinha um casarão que era só de moças que atendiam homens e tal, né? Então, a Cleide era muito esperta, muito esperta… — E ela conhecia de um outro casarão, que era também dessa proprietária, um rapaz que era farmacêutico… — Minto, ele nem era farmacêutico, ele trabalhava na farmácia, mas fazia as coisas de farmacêutico. — E ela foi e perguntou para ele o que que tinha, o que ele podia dar para ela que faria uma pessoa dormir, dormir muito. E aí o rapaz deu um frasco para ela com um líquido e falou: “Olha, você pinga dez gotas disso aqui numa água, qualquer coisa, e a pessoa vai dormir e vai dormir bastante”. — Até hoje elas não sabem o que eram essas gotas… —

Mas ela teve essa ideia e ela pegou esse frasco e deu para Damiana, falou: “Quando ele chegar, o que ele toma?”, ela falou: “Ele sempre toma um pouco de cachaça e depois toma água antes de dormir”, e aí a Damiana começou a colocar essas gotas… — Tanto na cachaça quanto na água. — Então o cara já apagava e dormia e, enquanto ele estava dormindo, ele não era violento com a Damiana. Então, Cleide foi fazendo a cabeça da Damiana para que ela deixasse esse homem. A Cleide ela era muito animada, assim, muito solícita, sabe? Então, quando ela limpava esse casarão, ela pegava na praça, nas ruas, onde fosse, flores brancas… Então, se fosse rosa, qualquer tipo de flor que fosse branca, ela colocava nos vasinhos ali daquele casarão, nos corredores, no ambiente comum ali, porque cada quarto era tipo uma moradia, né? E botava no banheiro também, porque era ela que limpava o banheiro ali e tal… Então ela gostava muito de flores brancas e ela não podia deixar essas flores com a Damiana. 

Então, às vezes ela dava uma flor pra Damiana e a Damiana para poder esconder essa flor, ela despetalava, tirava as pétalas ali daquela flor e guardavas as pétalas dentro de um caderno… — Jogava as folhas e o caule pela janela mesmo ali do quarto, para o marido dela não perceber que alguém tinha dado uma flor para Damiana. — Toda a folha do caderno que você abrisse tinha ali uma pétalazinha daquela flor branca dada pela Cleide. Acontece que, enquanto a amizade de Cleide e Damiana crescia, o marido de Damiana ficava ainda mais violento. — Mesmo com as gotas, mesmo ele dormindo, as coisas estavam piorando para Damiana.  — Damiana, conforme o tempo foi passando, percebeu que ela ia morrer e aí ela resolveu tomar uma atitude. Eu vou parar a história nesse ponto e volto na quinta-feira com o desfecho da história de Damiana e Cleide. Um beijo e eu volto em 

[vinheta] Quer a sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Picolé de Limão é mais um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]
Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.