título: fome
data de publicação: 06/06/2024
quadro: luz acesa
hashtag: #fome
personagens: thalita e everton
Este episódio possui conteúdo sensível e deve ser ouvido com cautela.
[vinheta] Shhhh… Luz Acesa, história de dar medo. [vinheta]
Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei para um Luz Acesa. — Talvez esse Luz Acesa seja um pouco mais impressionante, fiquem atentos aí a algum gatilho. — Hoje eu vou contar para vocês a história da Thalita. Então vamos lá, vamos de história.
[trilha]
A Thalita ela trabalha numa empresa — como é que eu vou dizer, vou simplificar — de prensas. — Quando você tem processos industriais que envolvam metal e que precisem de uma prensa… É num dos braços dessa empresa que a Thalita trabalha que tem isso. — E Thalita sempre se deu muito bem com a galera ali do setor dela de trabalho e, na hora do almoço, ela sempre saía para almoçar junto com outro funcionário, porque assim, eles são em duplas. Como é um trabalho meio — acho que meio não, mas bastante — perigoso e que você tem que ter muita atenção, eles trabalham em duplas e a dupla da Thalita é o Éverton. Então eles sempre saíam pra almoçar juntos e sempre levavam marmita. Eles saíam, iam para o refeitório, comiam a marmita e depois cada um ficava no celular ali, mas sempre juntos. — Thalita e Everton. —
E o Everton sempre levava uma mega marmita, ele comia muito, gostava muito de comer… — Delícia, né? Arroz, feijão e tal… — E a Thalita mais moderada ali na marmitinha dela. Até que um dia, um pouco antes do almoço, o Everton falou: “Thalita, eu esqueci a minha marmita”, e aí a Thalita falou: “Eu não acredito… Minha marmitinha é micra, não dá para comer nós dois e tal” e ele falou: “Não, eu já pedi comida lá no bar da rua de trás e eu vou lá buscar. Então, assim que eu bater o meu cartão aqui, minha marmita já vai estar pronta lá e eu vou lá, pego, volto e a gente almoça, beleza?”, “beleza”. Quando deu meio—dia, o Éverton bateu o cartão dele e foi buscar a marmita… — Então, gente, era coisa de dez minutos… Tipo 12:10, era assim, estourado, pra ele estar de volta… — Deu 12h10 e nada do Everton, 12h20 nada do Everton, 12h25 a Thalita mandou mensagem, falou: “Meu, você enroscou no caminho aí? Você encontrou alguém? Que foi?”, não teve resposta nenhuma no WhatsApp da Thalita.
Thalita abriu a marmita dela e foi comer, porque senão daqui a pouco acabava o horário de almoço… Ela ficou pensando: “De repente, o Everton encontrou alguém no bar e almoçou no bar”. Então ela acabou ali de comer a marmita dela e foi fazer o que ela faz sempre, sentar lá onde ela sentava com o celular para dar uma olhada — porque durante o expediente ali eles não podem pegar o celular para ver, né? — Deu 13h, um pouquinho antes 13h, ela foi, marcou o ponto dela e ela voltou pro setor. Quando ela voltou pro setor, ela percebeu que o chefe dela ali, o encarregado, estava estranho, estava uma movimentação estranha, estava tudo estranho. E ninguém falava nada pra ela e nem pra ninguém, né? — Para as outras duplas ali que trabalhavam naquele setor. — E aí, passado ali mais meia hora, a Thalita foi chamada pelo encarregado que disse que o Éverton tinha sofrido um acidente… Quando ele foi buscar a marmita — ele tinha que ir na rua de trás e era uma descida — ele estava de fone de ouvido descendo pela calçada, certinho, só que ele não ouviu as pessoas gritando que um caminhão — que era de um depósito de material de construção que ficava lá no alto dessa descida — tinha perdido o freio…
O cara estacionou e não puxou direito o freio de mão e o caminhão desceu, gente, sem ninguém no volante e prensou o Éverton num poste. O Everton morreu na hora… — Ele estava indo buscar a sua marmita… — Então, aquela movimentação é porque o corpo dele ainda estava lá e precisava vir perícia e tal, e eles tinham que avisar a família, enfim, uma tragédia. A Thalita ficou de um jeito que ela passou mal — ela tinha comido —, foi para o banheiro, botou tudo para fora e não conseguiu mais voltar… Primeiro que ela precisava ter uma dupla para fazer o trabalho que ela executava ali junto com o Éverton e, segundo que ela não tinha mais condição, ela foi dispensada do trabalho e a empresa pediu para o motorista lá levar ela em casa, não passar por onde estava o Everton… E a Thalita foi pra casa dela. Thalita morando sozinha — numa kitnet —, chegou, mas muito arrasada, muito mal, entrou em casa, sentou, tirou a roupa, foi tomar um banho para poder chorar embaixo do chuveiro, né? Saiu do chuveiro, a Thalita já tinha a mania de levar roupa para o banheiro, já sair trocada… — Mesmo morando sozinha ela sempre teve esse hábito. —
Era um banheiro e o quarto já era ali junto com a cozinha, tudo junto, né? Enquanto ela estava botando a roupa no banheiro, ela teve a impressão de ter ouvido um barulho… Ter ouvido um barulho ali na partezinha da kitnet dela que era a cozinha. Quando a Thalita saiu, ela deu de cara com o Éverton… [música de tensão] E aí, na cabeça da Thalita não fazia sentido, assim… “Então o Éverton não morreu? Ele saiu correndo e, sei lá, ele veio para cá para me avisar?”, na cabeça dela não fazia sentido o Éverton ali na casa dela. E, quando ela olhou melhor, ela percebeu que ele não, ele não tinha uma perna. Quando ele virava meio que de lado, ele estava meio amassado, meio rasgado, enfim… — O acidente, gente, que ele sofreu… — E ele olhando pra Thalita, ele falava: “Thalita, o meu almoço… Eu estou com fome, eu tô com fome”. A Thalita conseguiu chegar na cama dela e sentar e ela apagou… Quando ela acordou — porque isso que ela chegou na casa dela já era ali umas três da tarde —, quando ela voltou a si, já estava meio escuro, já eram umas cinco e pouco… E aí ela foi, acendeu as luzes e tal: “Meu Deus, eu fiquei tão mal que eu alucinei”.
Ia dar seis horas, como ela tinha colocado a comida para fora, ela não conseguiu almoçar, digerir aquela comida, ela estava com fome… E aí ela foi e pegou a comida que estava na geladeira, fez o prato, botou no microondas… Quando a Thalita virou, o Everton estava atrás dela… E ela escutava… Ele estava com uma voz muito fraca e ele falava: “Thalita, eu estou com fome… Thalita, estou com fome”. — Ele morreu com fome, né? —
E aí a Thalita falou: “Não, meu Deus, tenho que firmar o corpo, eu estou ficando louca, não vou desmaiar, não vou cair”, e aí ela olhou fixamente para ele e ele desapareceu. Thalita não conseguiu comer, pegou as coisas dela e saiu… — Foi para a casa de uma amiga. — No dia seguinte, o Everton seria sepultado às 17h00, então 16h00 os funcionários todos foram dispensados para poder ir no velório do Éverton, a Thalita foi também, assim, muito mal, mas foi. No velório tinha uma lanchonete, porque geralmente velório tem, né? E alguém comeu um pão e jogou no chão metade, sei lá quem… A Thalita viu o Éverton tentando comer aquele pão do chão… E aí ela teve uma crise de choro que as pessoas atribuíram ao que estava acontecendo ali, né? E ele tentava comer o pão, gente, ele estava com fome…
Thalita chorou, chorou, chorou e ele via ele circulando ali pelo cemitério. Ele não olhava para as pessoas, ele olhava para o chão tentando achar alguma coisa para conseguir comer, mas ele não conseguia comer, não conseguia pegar as coisas. Thalita foi embora, o Everton no dia seguinte apareceu de novo na casa dela e aí ela resolveu procurar ajuda. Na firma dela tinha uma moça que frequentava um centro de umbanda e ela contou para essa moça, essa moça ficou horrorizada e falou: “Não, a gente tem que conversar com a minha Mãe de Santo” e ela mandou uma mensagem para a Mãe de Santo, explicou tudo o que tinha acontecido e a Mãe de Santo falou: “Vocês saiam daí 18h e venham pra cá”. — Isso foi no dia seguinte que ela falou com a amiga. — E aí a Mãe de Santo recebeu as duas e falou para Thalita, falou: “Ele veio com você… Aqui ele não consegue entrar, mas ele veio com você e a gente vai encaminhar ele”. E aí fez umas coisas lá, né? Umas coisas da religião dela lá na hora, junto com a Thalita e falou que realmente ele estava apegado ainda à matéria e estava com fome…
E estava começando já também a sentir dor, ele falava, né? Nessa hora a Thalita não conseguia ouvir, mas ela percebeu a Mãe de Santo conversando com o Éverton. Ela não sabe o que foi feito, a Mãe de Santo — que a gente pode chamar aqui, sei lá, de Mãe Joelma —, Mãe Joelma falou para ela: “Filha, pode ir em paz que agora ele vai ficar aqui, ele vai ser cuidado e vai ser encaminhado”. A Thalita foi embora e nunca mais o Everton apareceu para ela, assim, ela ficou muito assustada um tempo depois e ela até perguntou para a Mãe de Santo: “Eu preciso pagar alguma coisa?” e ela falou: “Não, imagina, esse é o meu dever. Você pode ir que agora ele não vai conseguir ir atrás de você… Daqui ele vai ser encaminhado, ele vai ser levado e vai procurar a paz dele também, enfim, seguir o caminho dele”. — Aí a Mãe de Santo falou pra ela que que o nosso caminho não encerra aqui, né? Que aqui é só uma passagem, enfim… Então que ele ia ter esse auxílio para poder seguir o caminho dele, né? E ainda bem, né, gente? Que ela encontrou essa mãe de santo… Pensa… Mãe Joelma salvou… —
Me deu uma pena dele com fome, gente… Ele sem entender, morrendo de fome, tentando comer as coisas no chão, pedindo comida para Thalita. Eu fiquei arrasado com essa história, arrasada com essa história… Meu Deus do céu, Deus me livre morrer com fome. Fiquei mal com essa história. Mal… Nem assustada fiquei tanto, porque se me aparece um espírito me pedindo comida, como é que eu vou dar comida? Como que faz, gente? Porque se eu tivesse como dar comida pro cara, eu dava. Se botar no prato e deixar a pessoa tentar comer ajuda ou é pior? Porque eu faria, gente… Eu acho que nesse caso, talvez eu nem ficasse assustada, eu ia ficar tão nessas de “meu Deus, a pessoa está com fome” mesmo morta que eu, sei lá, ia dar uma coxinha pro falecido, não sei…
[trilha]
Assinante 1: Olá, Não Inviabilizers, aqui é Paula, de São Paulo, Thalita, acredito que por ter sido uma morte instantânea, horrível, então ele morreu com fome, infelizmente acabou se apegando a você depois de morto, querendo comer, que ele só queria comer porque a fome dói, né? A fome dói tanto em vida quanto depois de morto, eu acredito que doa também. E ainda bem que a mãe Joelma apareceu para ajuda-lo e acredito que agora ele esteja aí num bom lugar. Espero que você esteja hoje em dia muito bem e que você só tenha pensamentos de luz aí para o Éverton. Um grande beijo, Thalita.
Assinante 2: Aqui é Fernanda de Niterói, Rio de Janeiro. Eu já vi colocar frango na esquina, farofa, bebida alcoólica, mas dar coxinha para o morto nunca vi, hein, Déia? Nossa, essa história me deixou com muita pena. Fiquei com muita pena do moço que morreu. Pena por dois motivos: Morrer trabalhando deve ser uma droga. Imagina, você trabalhou metade do dia e depois morreu? Eu quero morrer depois de me divertir muito. Mas enfim, fiquei com muita pena dele ter ficado com fome. Podia ser depois. do almoço pelo menos, né? Eu não sei pra onde a gente vai depois que morre, mas pra onde ele foi tomara que tenha muita comida e que ele esteja muito bem.
[trilha]Déia Freitas: Comentem lá no nosso grupo do Telegram, sejam gentis com a Thalita. — É uma história muito difícil para ela também. E eu fiquei mal, gente, fiquei arrasada… Deus me livre. — Um beijo e eu volto em breve.
[vinheta] Quer sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Luz Acesa é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]