título: medo dos vivos
data de publicação: 09/04/2021
quadro: luz acesa
hashtag: #medo
personagens: dona julieta, elimara e rubinho
TRANSCRIÇÃO
[aviso] Atenção! Este episódio aborda os seguintes temas: Violência doméstica, feminicídio, filicídio e suicídio. [aviso]
[vinheta] Shhhh… Luz Acesa, história de dar medo. [vinheta]Déia Freitas: Oi, gente, cheguei. E hoje eu cheguei pra um Luz Acesa, e um Luz Acesa, onde eu, Andréia, tenho mais medo dos vivos do que dos mortos. Hoje eu vou contar pra vocês a história da Elimara, eu não mudei o nome da Elimara, porque essa história tem mais de cinquenta anos, quem conta essa história pra mim é a Dona Julieta, uma idosinha de setenta e nove anos, vacinada contra o coronavírus, né? E ela pediu pra neta dela me escrever e essa história aconteceu com ela, a Dona Julieta, quando ela era uma mocinha e trabalhava numa creche. Então vamos lá, vamos de história.
[trilha]A Dona Julieta, na época dela assim, né? O pessoal estudava assim, até a quarta série, depois ia trabalhar e ela como todo mundo, estudou até a quarta série, depois foi ajudar a mãe dela na lavoura e, quando ela fez dezoito anos, surgiu uma oportunidade, o prefeito da cidade fez uma creche municipal, não tinha antes, e aí precisava de gente pra trabalhar na creche pra olhar as crianças. E não tinha muito essa, Dona Julieta falou que ali na época dela não tinha muito essa de contratar professoras assim, ele falou: “Ah, vamos contratar aí da prefeitura umas mocinhas pra cuidar das crianças”, e foi um acontecimento na cidade dela assim, né? Porque a maioria das mulheres trabalhavam na lavoura e levavam as crianças juntos, né? As crianças com mais de dez anos depois da quarta série já trabalhavam pra tirar um sustento ali, né? O que é totalmente errado e, infelizmente a gente sabe que tem, até hoje tem isso.
Mas as criancinhas pequenas às vezes iam junto também, tipo criancinha de dois, três anos, porque as mães não tinham mesmo com quem deixar, e aí ficava lá, ficava correndo por lá, ficava correndo perigo, inclusive, e aí com a creche isso mudou um pouco, porque aí as mães ficavam mais tranquilas e tinha a questão também da alimentação que tinha na creche, então era um peso que você tirava ali daquelas famílias mais pobres, né? De ter que dar um almoço e um jantar, porque as crianças, elas comiam, elas almoçavam e jantavam, elas saíam da creche cinco horas já, como diz a Dona Julieta: jantada. [riso] E aí lá foi Dona Julieta trabalhar na creche, e na cidade, a cidade da Dona Julieta não era tão grande, mas também não era pequena a ponto de você conhecer todas as pessoas, e ela uma mocinha, né? Como diz a Dona Julieta, as mocinhas daquela época eram mais avoadas, né? Gostavam de… Ah, ficar pensando assim em romance, com quem vai casar, nã nã nã.
Então ela não prestava, assim, muita atenção nas coisas que aconteciam na cidade. E a gente sabe que a violência contra a mulher tá aí desde que o mundo é mundo, na época da Dona Julieta não era diferente, e não era diferente na cidade da Dona Julieta. E a Dona Julieta trabalhando ali na creche, né? Ela tinha acesso a todas as crianças, todas as mães e muitos pais, era uma época que assim, as pessoas saíam quatro horas da tarde da lavoura, então eles não buscavam os filhos ainda, né? Porque o jantar das crianças era servido quatro e meia, então… Muitos pais iam pra casa, né? Saíam da lavoura, iam pra casa e depois que dava cinco horas que iam pra porta da creche ali pra pegar as crianças, e a única ordem que a diretora da creche tinha passado é: “Você só pode entregar a criança pro pai e pra mãe, a não ser que a mãe, ou o pai de manhã aqui fale ‘Olha, hoje quem vai buscar é a vizinha fulana de tal’ “, mas teria que ser avisado no dia, e aí faz um bilhete lá e fica com aquela monitora, né? E ela já sabe que tem que entregar a criancinha X para a vizinha Y, né?
E aí Julieta tá lá cuidando das crianças e tal, era umas três da tarde, então as crianças tinham já saído do almoço, tinham passado por um periodozinho ali de soneca e já estavam ativas de novo. A jovem Julieta estava lá com as crianças e tal, quando alguém lá da portaria, tipo, uma tiazinha lá da portaria veio chamar que tinha um cara pra buscar uma criança, isso era três horas da tarde, e a jovem Julieta foi até lá e viu que era o pai de um garotinho, o garotinho Rubens, e era uma hora atípica porque não existia patrão bonzinho, você saía quatro horas da roça, né? Não saía três horas, e era três horas. E a Julieta, ela sentiu, sabe um arrepio? Ela sentiu um arrepio assim, estava tudo certo, era o pai do garotinho Rubens, mas tinha alguma coisa errada, mas ela era muito nova assim, ela não sabia o que poderia ser isso, ela não sabia.
E ele estava lá e ele falou: “Eu vim buscar o Rubinho”, e aí ela falou pra ele assim, porque os pais eles ficavam lá na porta da creche, não podia entrar, ela falou: “Só um minuto que eu vou buscar”, ela falou que na cabeça dela o certo seria ela falar: “Pera aí que eu vou falar com a diretora e vou buscar”, só que ela falou só: “Eu vou buscar”, e era um corredor grande pra ela chegar até a sala e ela pensou: “Eu pego o Rubinho, vou na diretora e aí se a diretora autorizar sair mais cedo, eu entrego”, enquanto ela estava andando no corredor, ela estava com um mau pressentimento, um mau pressentimento mesmo, ela falou que ela nunca tinha sentido isso, ela começou a sentir uma espécie de, além do arrepio que ela estava na nuca, um enjoo. Ela chegou na sala, o Rubinho estava desenhando e ela não conseguia, ela não conseguia chegar até o Rubinho, aí deu um lampejo nela, ela falou: “Não, não posso, é o pai da criança, eu tenho que entregar”, quando ela foi pra chegar no Rubinho… Então pensa, ela tá na porta da sala, as crianças estão ali desenhando, que ela foi pra caminhar até o Rubinho, na frente dela apareceu a mãe do Rubinho, que ela não sabe da onde, da onde? Não sabe da onde surgiu, ela estava bem habituada com a mãe do Rubinho, que era quem pegava todo dia, raramente o pai aparecia por ali.
Era uma mulher muito triste assim, que estava sempre de cabeça baixa, falava só: “Bom dia, boa tarde”, mais nada. E essa mulher apareceu na frente dela e aí ela ficou sem entender por onde ela tinha entrado, porque ela veio de dentro da sala, então o que a Julieta pensou? Que quando ela foi falar com o pai, a mãe já estava dentro da escola e já estava dentro da sala, e a mãe parou na frente dela… — Assim, eu já tô aqui querendo chorar porque eu sou uma idiota, né? — e falou: “Não”. A Julieta não entendeu e ficou olhando pra ela, e ela só repetiu: “Não”, a Julieta sem entender nada voltou, tremendo, porque assim, até aqui a Julieta não tinha entendido nada, mas ela estava sentindo muita coisa e só coisa ruim. Aí como a mãe do Rubinho falou: “Não”, ela voltou, fechou a porta da sala, mãe de Rubinho ficou dentro da sala.
E foi caminhando e ela falou que foi a caminhada mais pesada dela até a portaria, chegou na portaria, olhou pro pai do Rubinho e falou: “Não posso te entregar o Rubinho”, e ele fez uma cara assim, de bravo, respirou fundo, virou e foi embora. E aí a Julieta teve uma crise de choro, aí a moça que trabalhava lá também, que ficava na portaria, veio e falou: “O que foi? Ele te destratou?”, ela falou: “Não, não, não foi nada”, voltou pra sala, isso era umas três e pouco, né? E a mãe do Rubinho não estava mais lá. Quando foi cinco horas, que era a hora das crianças irem embora, então quem entrega é a monitora da sala, então se é responsável ali por vinte crianças, você entrega as vinte. Os pais iam chegando, né? Pegando seus filhos, ali todo mundo já tinha jantado, né? As crianças já saíam alimentadas e nada de aparecer nem mãe, nem pai de Rubinho, e o Rubinho na época, ele tinha cinco anos e ele tinha um irmão de onze anos que já trabalhava na roça, então às vezes, esse irmão de onze anos vinha também buscar o Rubinho, e não veio nem o pai, nem a mãe, nem o irmão do Rubinho que a Dona Julieta não lembra o nome.
E aí foi dando ali cinco e meia, e nada, e a Julieta falou: “Como é que eu vou fazer agora? Não posso deixar essa criança aqui, né?”, e numa época assim, a gente está falando de muito tempo atrás, o que a Julieta fez? Pegou o Rubinho e levou pra casa dela. Uma coisa que hoje jamais aconteceria, você falaria com diretora, sei lá, ficaria lá esperando a hora que for, né? Mas você não ia pegar uma criança e levar pra sua casa, mas foi que ela fez. E aí botou o Rubinho ali brincando com umas caixas, porque ela falou que todo mundo era pobre, ninguém, não tinha nem TV, não tinha nada dessas coisas assim, né? Mas ela assim, falou pra mãe dela que ela estava lá com o Rubinho porque ninguém tinha ido buscar e a mãe da Julieta, era uma das mulheres da igreja assim, sabe? Da Igreja Católica ali, que ajuda o padre, essas coisas. E nesse grupo de mulheres, tinha tipo, a mãe da Julieta, né? Que ficava ali ajudando o padre, aí tinha a mulher de fulano, a mulher de ciclano e tal, e aí tinha ali a mulher do dono da padaria que era desse grupo da igreja, e aí ela foi lá na casa da mulher. Por que o que acontecia? A mãe do Rubinho, ela trabalhava na casa da mulher do dono da padaria fazendo bico, tipo, dia de sábado, que não tinha roça, ela ia lá limpar.
Essa mulher aí da padaria ela sabia onde morava o Rubinho, né? Porque eles tinham essa relação, e aí foi lá e falou: “Escuta, você não tem como mandar alguém lá na casa do menino Rubinho pra ver o que aconteceu? Porque ninguém foi buscar ele, ele está lá na minha casa”, ela falou: “Ah, tá bom, vou mandar lá o Zezinho”, que o Zezinho era tipo o rapazinho que trabalhava na padaria que entregava pães. E mandaram o Zezinho lá na casa do Rubinho. Chegou lá na casa, o Zezinho chama, chama, chama, ninguém sai. Só que, pensa numas casas na roça assim, perto da roça e não tinha portão, então era o terreno ali, a casa mais no fundo e ele viu que a porta da casa estava aberta, ele falou: “Bom, eu vou ali na porta e grito, porque a porta tá aberta”, quando o Zezinho chegou perto da porta ali, ele viu que do lado da porta assim, estava a mãe do Rubinho morta.
Ele começou a gritar, gritar, gritar, saiu correndo, então assim, umas casas da roça, [efeito sonoro de sirene de polícia] uma longe da outra, até juntar gente, até vir a polícia que vinha da outra cidade, essas coisas. Resumo da história: Este homem quando deu a hora do almoço da roça, que muita gente levava a marmita pra roça, e muita gente ia comer em casa, porque já morava na roça, esse era o caso ali do Rubinho, o Rubinho morava na roça, numa casa cedida ali pelo dono do terreno e eles moravam na roça, então eles iam comer na casa, era um homem que já batia na esposa, batia nos filhos e, nessa hora do almoço, que o Rubinho estava na creche, ele matou a esposa, matou o filho. E no dia anterior, ele já tinha batido nela e tinha ido pro boteco, tinha falado bêbado que ia matar a família dele toda, e aí até os caras do bar falaram: “Você tá bêbado, você tá louco”, mas ele tinha falado isso, que ele ia matar, que ele não queria deixar ninguém com o sangue dele vivo.
Dona Julieta falou que depois a história que corria era: que ele matou a esposa, ele matou o menino que trabalhava na roça com eles e ele foi buscar o Rubinho na creche pra matar [voz de choro] o Rubinho. E aí a mãe do Rubinho apareceu, ela já estava morta, ela foi morta tipo onze da manhã, e ela apareceu três da tarde na escola pra impedir que a Julieta entregasse o Rubinho. É uma história de fantasma, é um Luz Acesa, mas é assustador, é triste, e é real, porque é o que acontece até hoje, casos e casos de homens que matam as mulheres e matam as crianças pra se vingar das mulheres. E o que corria lá na cidade era isso que, provavelmente, ali pela hora da morte, né? A moça estava muito machucada, então ele deve ter matado o menino antes e ela uma mãe viu ele matar o primeiro filho, e aí ela foi morta e aí ele foi pegar o Rubinho… E, detalhe, ele se matou, então ele também estava na casa morto, então quando ele voltou da creche sem o Rubinho, ele tirou a própria vida e aí foi encontrado ali os três corpos.
E o Rubinho ficou cerca de um mês ainda morando na casa da Julieta até achar um parente e tal, uma tia do Rubinho ficou com ele e, pra mim, essa história é a mais assustadora de todas porque a gente tem que ter medo das pessoas vivas, né? É isso assim, eu sinto muito, muito, muito, por essa mãe, por essa criança, pelo Rubinho, né? Que perdeu o convívio ali com a mãe dele, com o irmão dele. E a gente vê, né? É uma história de fantasma, eu geralmente não acredito em fantasmas, mas eu acredito nisso, eu acredito que ela apareceu ali pra impedir a Julieta de entregar o Rubinho pra morte, né? Porque era entregar o Rubinho pra morte, ele ia pra casa, ele ia ver a mãe e o irmão mortos e ia ser morto também.
Eu evitei repetir o nome da mãe do Rubinho na história porque eu não quero que de alguma forma ela seja lembrada por isso, né? Então eu falei lá no começo, eu acho que tá bom, né? E é isso. Nesse mundo ainda é mais perigoso para a mulher a convivência com os vivos do que com os mortos. Eu volto na segunda-feira, gente, um beijo.
[vinheta] Luz Acesa é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]