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título: pé de couve
data de publicação: 20/07/2023
quadro: picolé de limão
hashtag: #couve
personagens: dona catarina e um cara

TRANSCRIÇÃO

Este episódio possui conteúdo sensível e deve ser ouvido com cautela.

[vinheta] Picolé de Limão, o refresco ácido do seu dia. [vinheta]

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei pra mais um Picolé de Limão. — E hoje eu vou contar para vocês uma história que contem aí algumas passagens de violência doméstica, então estejam avisados. — A história que eu vou contar para vocês é a história da Dona Catarina, uma linda e idosinha de 79 anos que me escuta, não perde uma história. — Inclusive as histórias do Pimenta. [risos] Amo. — E essa história aconteceu na vida de Dona Catarina quando ela tinha 19 anos, então a gente está falando aí de uma história que começou há 60 anos. Então vamos lá, vamos de história. 

[trilha]

Dona Catarina, quando tinha por volta dos seus 16 para 17 anos, morando numa cidade muito, muito, muito pequena do interior, muito, muito remoto, começou a ser pressionada pela família para casar. — Então, assim, era a idade ideal para casar e já ter filho, enfim, constituir sua família. — E Dona Catarina não queria casar com 16 anos, ela deu uma enrolada e com 17 anos arrumaram ali um pretendente para ela, que tinha 20 e poucos e ela começou um namoro — um breve namoro — e logo se casou. [efeito sonoro de sino tocando] Então, quando ela tinha ali seus 18 anos, ela estava casadinha, nova, né? Só que o marido dela era meio esquisito, assim, meio ignorante, enfim, mas nunca tinha encostado a mão nela, nada… Um ano se passou e Dona Catarina ela não engravidava…. — Não engravidava. — E ele foi começando a ficar nervoso, porque ele queria filhos. — “Onde já se viu? Já estão casados há um ano e ela não engravidava, né?” —

E aí, quando ela estava com 19 anos, um dia depois do aniversário dela, que ele perguntou se ela estava grávida… Ela não estava grávida. E aí este homem deu um bofetão na cara de Dona Catarina. [efeito sonoro de tapa estralado] E Dona Catarina falou para mim: “Andréia, uma coisa é você ter um marido ignorante, meio assim, sabe, rústico, sei lá, te trata meio assim… Eu, sei lá, estava meio acostumada com meu pai, era mais ou menos a mesma vibe. Outra coisa é um homem que te dá um soco na cara”. E aí ela ficou chocada, sem saber como agir e ela levantou e, conforme ela levantou, este homem já se arrependeu — assim, aparentemente — do soco e já foi pegar um pano, enfim, para pôr no nariz dela que sangrou, enfim… E ela ficou pensando naquilo. Isso era um dia de manhã e ele saiu para trabalhar. Ele trabalhava… — Pra vocês terem uma ideia, a cidade de Dona Catarina, que hoje é a cidade, na época não era cidade, era distrito de uma outra cidade, então era tudo muito pequeno, né? —

E ele trabalhava nesse distrito como se fosse para a prefeitura, mas não tinha prefeitura ali, enfim, ele era contratado, não era concursado, nada, mas era tipo um cargo, assim, desses de governo, sei lá, manutenção de coisas… Então às vezes ele estava trabalhando com trator, enfim, essas coisas, e ele saiu para trabalhar… E ela ficou pensando naquilo que tinha acontecido com ela. Aí Dona Catarina foi lá, limpou a casa… Eles moravam numa roça e ela cuidava, ela gostava muito de plantar e ela tinha uma horta e também plantava ervas medicinais, enfim, ela gostava muito de plantar. Então ela foi lá cuidar das plantações dela e depois ela fez o almoço e este homem ele vinha almoçar em casa… E aí ela serviu o almoço para ele, ele almoçou e ele sempre almoçava, tirava um cochilinho ali e voltava para o trabalho. E aí ele foi lá, almoçou e foi tirar um cochilo dele… Conforme ele estava tirando o cochilo, este homem começou a sentir umas pontadas na barriga… Uma dor de barriga imensa que este homem não conseguia ficar em pé, não conseguiu voltar a trabalhar… 

Enquanto ele estava lá se aliviando… — Eles não tinham banheiro dentro de casa, então era tipo uma cabaninha improvisada, enfim… — Enquanto ele estava lá na cabana, que seria o banheiro deles e tal, ela foi até lá e falou pra ele: “Então, isso que aconteceu agora com você, fui eu que fiz… [efeito sonoro de tensão] A próxima vez que você encostar em mim, me dar um soco, um tapa ou levantar a mão para mim, o que vai ter na sua comida é veneno e você não vai saber o dia, não vai saber qual refeição, não vai saber a hora que você vai comer, mas eu vou te envenenar e eu vou te matar. E sabe o que eu vou fazer com você? Tá vendo aqueles pés ali de couve? Aquele pé de couve mais alto, mais bonito? Eu vou te enterrar embaixo daquele pé de couve e vou sair por aí dizendo que você foi embora e me abandonou”. E aí ela saiu daquela casinha e voltou lá para dentro de casa, tremendo…. Porque ela pensou: “Bom, agora ele vai vir aqui e vai me quebrar de pau, né?”, mas ela estava preparada. Ela falou: “Eu vou pra cima…”.

E aí ele saiu e voltou lá para casa, em silêncio, e deitou… Porque ele ficou mal. E dona Catarina tinha isso, ela era muito boa com ervas, então ela sabia o que dava dor de barriga, enfim, o que podia te matar. [risos] E ele sabia que ela sabia disso, porque quando as pessoas ficavam doentes, mesmo ela muito nova, ela fazia remédios com ervas ali pra vizinhança, porque ninguém ia no médico, ninguém tinha dinheiro pra remédio, enfim, não era assim nada acessível, né? E aí o tempo passou, ele nunca mais tocou na Dona Catarina, mas ela não engravidava e isso aborrecia ele. Até que um dia, este homem almoçou e foi trabalhar… E aí depois apareceram algumas pessoas na casa de Dona Catarina e um acidente tinha acontecido… Enquanto ele estava trabalhando num trator, uma espécie de trator lá, o trator virou e ele, de alguma forma, ele caiu primeiro e o trator caiu por cima, algo assim, e ele foi esmagado pelo trator. Então estavam ali para avisar a Dona Catarina que o marido dela tinha morrido… 

Na hora ela ficou quieta, ela ficou um pouco chocada, sim, mas depois ela olhou em volta e pensou: “Bom, tenho minha casinha, [risos] tenho minha roça, faço aqui minhas ervas, posso até cobrar valores simbólicos só pra eu poder viver um pouquinho melhor e é isso”. [risos] E aí, tipo, não era bem uma prefeitura, mas o próprio distrito lá fez o enterro do marido dela e ela virou uma viúva, podendo se casar de novo aí agora com quem ela quisesse. — Porque, a partir do momento que ela casou, quem era dono, entre aspas, dela, era o marido e agora que ela estava viúva, ela era dona de si, então para ela foi ótimo. — E por que ela não engravidava? [risos] Dona Catarina tomava umas ervas sempre que transava com ele e fazia um banho de assento lá com ervas sempre depois de transar com ele. — Não tinha o anticoncepcional ali pra ela na época, mas ela fazia aí o seu próprio concepcional. Já amo… [risos] — Ela falou: “Eu jamais, Andréia, pensei em ter filhos com aquele homem, eu não sabia como eu ia me livrar dele, lógico, não pensando em matar, tipo, ir embora, fugir algo assim… Mas eu não tinha forças, não tinha recursos, enfim, né? Mas aí veio essa notícia boa e foi aí esse trator”. Palmas para o trator… [efeito sonoro de salva de palmas] 

Palmas para o trator que resolveu aí o problema de Dona Catarina. Dona Catarina, depois casou novamente com o homem que ela amava, teve duas filhas e ela sempre falou para as filhas: “Olha, não importa, se ele te bater uma vez só, você volta para a casa da mãe, você larga ele… Porque ele vai te bater de novo”. —Eu concordo com a dona Catarina, dificilmente uma mulher que sofre violência doméstica uma vez não vai sofrer uma segunda vez com o mesmo homem. Então, eu repito aqui o que eu falo sempre: Se você apanhou e você não tem forças para denunciar ou ir embora imediatamente, porque isso pode acontecer sim… Eu já recebi relatos até de policiais militares femininas e delegadas que sofriam violência doméstica… Então, esse medo e esse enfraquecimento que a gente tem não é individual, é um sistema. Então é muito difícil a gente vencer esse sistema. Então eu entendo sim quando a mulher tem medo de sair de casa na hora ou de denunciar, mas você pode não fazer na hora, mas se organize… Se organize pra ir embora, se organize pra denunciar, se organize para fugir, faça uma denúncia anônima… Finja que você é sua própria vizinha que viu você apanhando, entendeu? Se organiza e vai embora. —

Vocês já sabem que pra mim é sempre não, né? [riso] Por mim vocês já sabem, é não, eu não perdoo, mas violência doméstica é “não” três vezes, entendeu? Se você levou o primeiro tapa, o primeiro soco, o primeiro beliscão, o primeiro puxão de cabelo, vai haver um segundo… Então, se organize para que esse segundo não aconteça. Dor de amor passa, saia desse relacionamento mesmo amando. — E essa foi a conversa que tive com a Dona Catarina… — E foi uma coisa que ela me falou também, ela falou: “Olha, Andréia, o meu segundo casamento foi por amor, mas eu tinha muito claro na minha cabeça que se ele tocasse em mim de maneira violenta, de qualquer forma, eu ia pegar as minhas filhas e ir embora”, “Ah, passou pela minha cabeça matar ele? Passou”. [risos] Ê, dona Catarina… “Se caso algo acontecesse… Mas não faria, iria embora”. 

Então, esse o recado que eu e dona Catarina, uma senhora de 79 anos, deixamos aqui para vocês: Violência doméstica não deve ter perdão. E o perdão que eu digo é da sua vida, de você ficar com essa pessoa… Lógico que o homem que cometeu violência doméstica pode procurar um tratamento, pode fazer terapia, aí é problema dele, mas você longe. Não é você que vai perdoar e acompanhar esse processo de reabilitação que aconteça com ele, entendeu? Você tem que pensar em você, na sua vida. Pode ser que muita gente não concorde com o que eu estou falando aqui, mas a prioridade é você, mulher, sobreviver e não ser morta. Então, se organize e mesmo amando, saia de um relacionamento onde há violência com você ou com seus filhos, enfim, se organiza… 

[trilha]

Assinante 1: Oi, Déia, oi, Não Inviabilizers, aqui quem fala é a Maria do Distrito Federal. Eu queria dizer que Dona Catarina é simplesmente meu exemplo agora, porque se a gente pensar que há 60 anos uma mulher ameaçou envenenar o marido abusivo para se proteger, para se respeitar, porque ela não aceita a agressão, cara, um exemplo demais… Eu mesma penso que eu não fui ensinada a me defender dessa forma, eu não fui ensinada a me proteger dessa forma e eu jamais, jamais teria coragem de fazer o que ela fez. Não porque ela foi absurda, mas porque eu teria muito medo. Medo de ser agredida, medo de ser morta… Então, Dona Catarina foi simplesmente visionária, se defendendo e se amando, né? E colocando ali um limite rígido frente à agressão. Então, Dona Catarina, muito obrigada por nos mostrar que é possível sim. Beijão para todo mundo. 

Assinante 2: Oi, Déia, oi, Não Inviabilizers, eu sou a Thaís e falo aqui do Rio de Janeiro e eu queria dizer que a Dona Catarina é minha nova heroína nacional. Teve coragem de botar um limite na relação dela e fugir de um relacionamento extremamente abusivo. Como a Déia sempre fala, não perdoe, fujam… Ele com certeza vai fazer de novo, ele não vai mudar, não vai se arrepender… Se ele te deu um tapa uma vez, amanhã ele vai te dar um soco e depois ele vai te matar, isso é muito sério. Então, mulheres, denunciem, fujam, não paguem para ver como a gente aí vê tantas mulheres perdendo a vida por feminicídio. Um abraço a todas as mulheres e que vocês tenham essa força da Dona Catarina. 

[trilha]

Déia Freitas: Essa é a nossa realidade, né? Eu queria estar falando aqui outras coisas, mas a gente vê uma história que ocorreu há 60 anos e eu recebo e-mails de histórias que aconteceram ontem, iguais. Então, pouca coisa mudou, porque a gente está falando de um sistema, mas hoje a gente tem mais leis e recursos que a gente pode aí administrar. Não estou falando de recursos financeiros, mas você pode, por exemplo, até… A pessoa te deu um soco? Você posta sua cara, assim, com roxo na internet, falando: “Ó, Fulano, que todo mundo gosta aí, me deu um soco e eu estou saindo de casa”. Muitas vezes os homens que agridem eles são excelentes homens fora de casa e eu acho que é um passo também que a gente desmascara esses homens. Então, tamo junto, eu estou aqui e o que eu puder trazer desse tipo de caso, onde gente conseguiu escapar, eu vou trazer. Então é isso, gente… Um beijo, dona Catarina, já te amo. Eu volto em breve. 

[vinheta] Quer a sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Picolé de Limão é mais um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]
Dourado

Dourado é pai, abandonou a teologia e a administração para seguir a carreira em TI e sua paixão por fotografia. Gosta de cinema, séries, música e odeia whatsapp, sempre usou Telegram.