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título: sem volta
data de publicação: 06/02/2025
quadro: picolé de limão
hashtag: #semvolta
personagens: dona julieta, marcos, paulo e seu josé

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Picolé de Limão, o refresco ácido do seu dia. [vinheta]

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei para mais um Picolé de Limão. — E a história de hoje é uma história que contém gatilhos, uma história pesada… Então, ouçam com cuidado. — E hoje eu vou contar para vocês a história da Dona Julieta. Então vamos lá, vamos de história.

[trilha]

A Dona Julieta casada com seu José há quase 50 anos e eles tiveram dois filhos, o Marcos e o Paulo. O Marcos se formou em engenharia e, quando ele estava ali já com uns três anos de profissão, o Paulo se interessou pela mesma área de engenharia também ali elétrica e cursou… Um irmão sempre deu muita força para o outro e eles cresceram assim, profissionalmente. — A gente está falando aqui de pessoas que vieram da classe C e que ascenderam ali, subiram um pouco o seu padrão econômico por meio do trabalho. — Uma vida muito boa, Seu José, Dona Julieta, Marcos e Paulo… O Marcos foi o primeiro a se casar, o Paulo casou, teve uma filha, se divorciou e voltou a morar com Dona Julieta e Seu José. A vida corria bem, agora Paulo divorciado, conhecendo gente nova, saindo com algumas garotas que ele conhecia no aplicativo, conseguiu uma namorada mais firme, aí depois a namorada foi morar no Canadá, ele ficou deprimido e tal, mas saiu dessa e ficou bem. E a vida foi seguindo… Os irmãos, trabalhando juntos na área de engenharia e tudo certo… 

Nessa vida nova de recém—solteiro, o Paulo foi fazendo ajustes ali. Ele pegava a filha praticamente todo final de semana, durante a semana e levava a filha alguns dias para a escola… Ele tem uma boa relação com com a ex e tudo certo, gente, a vida foi correndo, assim, maravilhosamente bem… Essa namorada do Paulo que tinha ido para o Canadá e também já estava para voltar, ele estava com esperança de talvez sair com ela. E, nessas, o Paulo foi convidado para uma festa… — Lembrando aqui que agora Paulo e Marcos circulam num ambiente com mais dinheiro. — E nessa festa rolava ali alguns entorpecentes, algumas substâncias, algumas drogas… E o Paulo nunca foi dessa vibe, o Marcos nem ia nessas festas porque, assim, ele casado e tal, sabia que era uma festa, assim, mais babadeira, enfim, não queria ir, não queria levar a esposa, não ia… O Paulo depois que ficou solteiro ele ia para fazer um social, até um networking rolava. E, numa dessas festas, era ali no meio da madrugada, um cara que tem uma empresa muito grande, convidou uma galera mais restrita para conhecer uma droga.

Na hora ele chamou essa droga de “super maconha”. Estava todo mundo junto, todo mundo num apartamento super chique, uma cobertura que era duplex. Eles foram para a parte de cima, que tinha uma parte aberta e foram fumar essa droga. Na cabeça do Paulo, aquilo era uma maconha mais potente? Talvez? E ele foi ali e deu umas tragadas naquela maconha e, na hora, ele sentiu um bem—estar, uma coisa muito boa. — Ele já tinha fumado maconha antes, enfim, queria fumar mais… — Quando ele percebeu, já era de manhã, já era umas dez horas da manhã e ele ainda estava fumando essa maconha com uma galera ali e a galera estava toda igual ele, meio sem entender o que estava acontecendo e sem saber onde estava. Quando deu dez horas, o cara lá, dono da casa expulsou todo mundo e o Paulo não lembra bem quando, como que ele chegou em casa. Essa balada foi numa quinta—feira e ele dormiu até sábado. —  Lembrando aqui que esse é um relato individual, né? As coisas, sei lá, podem não bater no seu organismo como bateu no organismo do Paulo. Ele dormiu até sábado. É um relato muito pessoal… —

Dona Julieta ficou desesperada porque ela tentou acordar ele na sexta—feira e não conseguiu, viu que ele estava respirando e parecia que ele estava muito bêbado. E o pai ali falou: “Não, deixa ele dormir, ele está muito bêbado”, — Seu José falou, falou, né? — “Quando ele acordar, a gente conversa com ele”. Seu José e Dona Julieta já sabiam que vez ou outra ele fumava maconha. — Muita gente fuma e não acontece nada, ou muito gente fuma e dá ruim, aqui a gente está falando de uma experiência individual, que é do Paulo, porque depois muita gente fica escrevendo pra gente “ah, porque não é assim”, “não é assado”, é uma experiência individual do Paulo. — Quando Paulo acordou, ele contou isso pra Dona Julieta ali, para o Seu José, foi repreendido pelos pais, eles falaram que ele não tinha mais idade para isso e nã nã nã, tinha batido ruim essa maconha, porque isso, que aquilo… — Mas, como disse a Dona Julieta, os dois filhos sempre foram trabalhadores, sempre foram incríveis. Então, o fato de fumar maconha aqui e ali algum dia nunca foi um empecilho para a família… Nunca, né? E não é mesmo, né, gente? A gente sabe que a maconha, por exemplo, é proibida no Brasil e só quem morre com isso é preto e pobre, porque as pessoas ricas continuam usando drogas, né? Então, não é um assunto que a gente vai entrar aqui, mas essa é a realidade. —

Paulo e Marcos sempre foram muito abertos com os pais — um diálogo ótimo, uma família ótima —, enquanto ele contava o relato para o pai, para a mãe, na cabeça do Paulo ele já estava planejando sair para procurar essa droga que ele tinha experimentado. — Então, veja, ele usou na sexta ali de madrugada, de quinta para sexta, acordou no sábado já atrás… — Tomou um banho, não quis comer, nada e falou: “Mãe, vou dar uma volta, vou sair, já volto”. O Paulo voltou pra casa na terça—feira. Na sexta ele ia buscar a filha na escola e não buscou, então a filha não foi o final de semana pra casa dele. Terça ele chegou totalmente sujo e transtornado, também não foi ver a filha… E, a partir daí, o Paulo não foi mais a mesma pessoa. — O que me impressionou foi a rapidez. — Ele desaparecia por dias… Um dia ele contou pra mãe que ele estava fazendo uso de K2 e K9. Dona Julieta não sabia nem do que se tratava e chegou um tempo que o Paulo desapareceu por 12 dias. E aí a Dona Julieta foi fazer um boletim de ocorrência de pessoa desaparecida e ali ela ficou com vergonha de falar sobre o uso de drogas, né?

Só que quem está fazendo ali a ficha e conversando com você já está meio que ligado em algumas coisas e perguntou, e aí ela falou que ele tava usando drogas e a pessoa que estava ali, o escrivão, perguntou que droga que era ela, ela falou K2 e K9 e o cara foi bem direto pra ela e falou: “Olha, se tiver no começo vai atrás de seu filho e interna, porque daqui um tempo você vai receber seu filho no caixão, não tem saída”, o cara falou isso para ela. Dona Julieta se desesperou e ela falou: “Mas onde que eu vou buscar o meu filho? Eu não tenho nem ideia de onde ele tá”. E aí o policial deu alguns lugares e falou: Não vai sozinha, a polícia nem vai com você, mas tem umas associações de pessoas e tal e igrejas, conversa com esse pessoal da igreja e tal”. Dona Julieta — que vem de uma família evangélica — conversou com uma pessoa que ela conhecia de uma igreja, que conhecia outra pessoa que era desse pessoal que faz campanha… — Tipo na Cracolândia, né? Aqui em São Paulo a gente tem a Cracolândia, que são algumas ruas aqui do centro de São Paulo, onde as pessoas que consomem alguns tipos de drogas se reúnem, enfim. É uma coisa que se precisa de política pública, eu já falei aqui mais uma vez que eu sou contra internação compulsória, a pessoa que precisa ter esse desejo de querer se tratar, enfim… Mas também é um assunto que a gente não vai entrar aqui agora. —

E aí, com a ajuda desse pessoal de uma igreja evangélica, Dona Julieta conseguiu localizar o filho e o pessoal da igreja conseguiu trazer o filho para fora daquele lugar onde ele estava. Assim que ela viu o filho ela ficou desesperada, começou a gritar e aí alguém falou pra ela que ela não podia gritar ali, que não podia fazer escândalo, que era pra ela pegar o filho dela e ir embora. E aí ela ligou pro Marcos, que até então ela não tinha contado nada para o Marcos e o Marcos veio buscar o Paulo, achando que, sei lá, o Paulo tinha sofrido um acidente, qualquer coisa… Quando o Marcos viu o Paulo, ele já não queria nem botar no carro, falou: “Não, não vou ajudar”. Só que aí Dona Julieta chorou, enfim, e eles levaram o Paulo para casa. Paulo estava como um zumbi… Ele ficava parado numa mesma posição por horas, ele não conseguia se mexer. — Parecia que ele estava viajando, sei lá, estava numa onda e não conseguia se mexer. Se você colocasse ele, assim, parado, como um boneco, ele ficava. —

E aí, quando o Seu José viu aquilo, o Seu José começou a passar mal, Marcos pegou o Seu José e o levou para o Pronto Socorro e Dona Julieta ficou ali com o Paulo sem saber o que fazer. Aí tentou dobrar ele, botar ele na cama e ela não conseguia… Ele estava em pé, meio curvado, na mesma posição por horas. E aí, depois que passou aquela onda dele, ele queria sair de casa de qualquer jeito para ir atrás da droga. — Então, aqui a gente está falando de um engenheiro com uma família mega estruturada, com uma condição financeira muito boa. — Paulo deu um empurrão na Dona Julieta…  para ir atrás de novo da droga. E aí, quando ele voltou, ele acabou falando para a mãe o que ele estava usando mesmo, que estava usando mais, enfim, toda vez que ele falava isso, K2, K9 e que ele não se importava mais se ele ia viver, se não ia viver, porque ele não ia conseguir viver sem a droga. Dona Julieta foi buscar o filho várias vezes para trazer para casa. Numa dessas idas e vindas, ela resolveu internar ele numa clínica sem o consentimento dele. — O que eu já falei aqui que eu acho errado. — Funcionou? Não funcionou. Ele ficou 60 dias na clínica, depois de 60 dias ele falou: “Estou bem, vou voltar a trabalhar, vou voltar a ter minha vida”, saiu da clínica e foi comprar droga. 

Dona Julieta não sabe mais o que fazer… Ela ficou tão abalada e abatida que ela precisou procurar um médico e o médico falou que ela tinha que passar no psicólogo e tal e ela começou a passar na psicóloga e isso ajudou, mas ela não consegue ter uma vida tranquila porque ela sabe que o filho dela tá do jeito que está. E o que Dona Julieta falou para mim? “Eu, como mãe, eu falo para você: Ele está a pouquíssimo tempo de morrer… Não tem como viver daquele jeito por muito tempo mais”. Dona Julieta agora está se preparando para perder o filho…  — Que ela já perdeu. Essas são palavras da Dona Julieta. — É um relato muito difícil, muito sofrido. — Seu José não considera o Paulo mais como filho, proibiu ele de entrar em casa, mas não adianta, ele não consegue mais voltar para casa… Ele está de um jeito tão debilitado que ele já foi de onde ele fica ali usando droga e tal, duas vezes para a Santa Casa de Misericórdia, e aí avisam Dona Julieta, ela corre lá e o médico da última vez falou para ela: “Não tenha mais esperança, não tenha mais esperança, o organismo dele está de um jeito que eu não sei o que te dizer mais”. — Nem sei, assim, mas acho que o médico também tem que mandar a real, né? — E ainda assim, ele saiu debilitado e foi atrás dessas duas drogas aí que estão agora circulando pelo Brasil todo e sei lá mais onde, né? 

Mas Dona Julieta, o que ela conversou com pessoas quando também ele foi para a clínica, falou que, gente, é pior que o crack, é pior que o crack. E foi numa dessas, de alguém oferecendo, ele experimentou e foi experimentar e não conseguir parar. — E aí aqui mais uma vez a gente diz: As experiências são individuais, pode ter gente que experimentou, deu uma bad e não provou mais, né? A gente está falando aqui do Paulo. — O Marcos se recusa a se aproximar do irmão. A ex-mulher — que a gente pode chamar aqui de “Silvia” —, a Silvia não deixa mais a menina nem chegar perto do pai. — Não tem condição, gente… Dona Julieta falou isso: “Ele não é mais a mesma pessoa. Ele não é mais a mesma pessoa”. — Dona Julieta escreveu pra gente para contar esse relato, para alertar sobre o que ela está passando, que outras famílias podem passar e para dizer que ela está se preparando para a morte do filho e que ela nunca imaginou que ela ia passar por isso e está sendo, óbvio, muito difícil, mas que chegou num ponto que ela acha que vai ser melhor para todo mundo, porque ele tá está irreconhecível, está um zumbi… Não consegue nem saber mais que ela é a mãe. 

E depois de muito ir nesse lugar que ele que ele fica ali com outros usuários e tal, Dona Julieta foi proibida de entrar lá, ela não pode mais entrar lá. Então, agora quando ela tem notícia do filho é por algum missionário da igreja que tem autorização para entrar onde o filho dela está lá e às vezes quando ele sai… Dona Julieta falou que já encontrou o filho dela, um engenheiro formado, com um escritório grande, comendo lixo na rua… — Imagina para uma mãe. — E agora o Marcos, como o escritório é dos dois, os trabalhos que eles tem juntos, o Marcos tá passando o dinheiro do Paulo direto para a filha do Paulo, né? Mas já está a ponto também de acabar com essa sociedade. — Porque é ele agora que está fazendo as coisas sozinho. — Dona Julieta falou que o filho dela sempre foi, nossa, um doce de pessoa, sempre contou tudo para ela. Dona Julieta falou: “Andréia, para você ter uma ideia, quando ele foi transar pela primeira vez, foi para mim que ele veio contar, foi para mim que ele veio perguntar como que usa camisinha, como que faz as coisas”, então imagina como que tá essa mãe… 

Por que dessa droga é mais difícil, mais complicado? E, segundo o que o médico falou para Dona Julieta, o que essa droga vai fazendo no organismo não tem como regenerar, não tem volta. E é por isso que vai piorando cada vez mais… Fica aí o alerta e também a nossa solidariedade aqui a Dona Julieta, eu não consigo nem imaginar o que é você estar apenas esperando seu filho morrer.

[trilha]

Assinante 1: Olá, pessoal, aqui é Andréia, eu falo de São Paulo, sou profissional de saúde. Dona Julieta, sinto muito pela situação que você está passando e eu sei que não é fácil. A adicção é um problema sério e o processo de recuperação exige um compromisso por parte da pessoa, bem como a paciência e encorajamento dos amigos e familiares. O máximo que a senhora pode fazer é cuidar da sua saúde mental, como a senhora já tem feito, mantendo-se na terapia e, na medida do possível, e respeitando seus limites, ofertar a seu filho acolhimento de forma empática, sem julgamentos e encorajando a buscar o tratamento. Sobre a droga, ela realmente é muito forte e vicia muito rápido por conta da quantidade do ativo que é ofertado e do mecanismo de ação que se dá diretamente no sistema nervoso central. Toda droga tem potencial para viciar e pode causar desde surtos psicóticos a danos irreversíveis no seu cérebro, mesmo aquelas que são aceitas socialmente como álcool, cigarro… Por isso, muito cuidado ao fazer o uso de qualquer substância. Primeiro saibam e se informem sobre o que aquilo pode fazer com você. Segundo, garantam que o que você vai consumir vem de uma origem segura e confiável, não fiquem usando qualquer coisa por aí. E, terceiro e mais importante, busquem não se isolar, estar em comunidade, ter uma rede de apoio nessas situações faz toda a diferença. Se você está passando também por uma situação difícil, não deixe de conversar com alguém ou buscar ajuda de um profissional. As drogas podem ser gostosas no momento, muitas vezes uma válvula de escape, mas elas não resolvem nada. 

Assinante 2: Marlene Barreto, sou psicanalista, professora e pesquisadora da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Precisamos considerar não apenas a droga, mas a tríade que é formada entre a pessoa que utiliza droga, suas características psíquicas, a substância que essa pessoa utiliza e as propriedades farmacológicas e o contexto no qual essa substância ela é utilizada. Não existe maconha sintética, na verdade, o nome correto é “agonista de receptores de canabinoides sintéticos” ou “canabinoides sintéticos”. Uma coisa é a planta cannabis de origem vegetal e a outra são as substâncias sintéticas produzidas em laboratórios. Esses canabinoides eles foram utilizados na década de 60, ou seja, essa não é uma discussão nova para tentar entender a situação do sistema nervoso central. E hoje existem mais de 300 canabinoides sintéticos diferentes manipulados em laboratórios clandestinos, sem fiscalização. Por esse motivo, essas substâncias estão muito contaminadas e não há nada da planta da maconha nessa composição, mas há uma mistura de compostos químicos que, em função desses contaminantes, torna-se essa droga muito mais potente. Portanto, não há um uso seguro de canabinoides sintético, nas nós sim podemos cuidar das pessoas que estão sob o efeito dessas substâncias, como, por exemplo, utilizando as estratégias de redução de danos. Nunca filme pessoas que estão sob efeito dessas substâncias, não grave, não compartilhe esses vídeos. Chame o SAMU, o 190, para prestar uma assistência adequada. Infelizmente, não há um antídoto para essa situação emergencial e por isso, é muito importante que essas pessoas estejam protegidas e amparadas do ponto de vista da sua saúde física e da sua saúde mental. 

[trilha]

Déia Freitas: Comentem lá no nosso grupo do Telegram, sejam gentis com Dona Julieta — ela está fazendo o que pode, do jeito que dá, dentro das possibilidades emocionais também e até físicas, ela é uma senhora —, um beijo e eu volto em breve… 

[vinheta] Quer a sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Picolé de Limão é mais um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]