título: terreno
data de publicação: 02/02/2022
quadro: picolé de limão
hashtag: #terreno
personagens: dona cleonice, seu joão e tânia
TRANSCRIÇÃO
[vinheta] Picolé de Limão, o refresco ácido do seu dia. [vinheta]Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei pra mais um Picolé de Limão, e hoje eu vou contar para vocês a história da Cleonice e do João. — Eu resolvi colocar essa história no Picolé de Limão porque eu acho que é uma prestação de serviço, mas lá para o final tem um pouquinho de Luz Acesa. Então já fica aí o aviso, tá? Vai ser bem pouquinho. — Quem me escreve é a Ana, ela é sobrinha neta da Dona Cleonice e essa história já tem mais de 20 anos. Então vamos lá, vamos de história.
[trilha]A dona Cleonice e o seu João eles eram irmãos, era uma família grande de muitos irmãos, só que a Dona Cleonice e o seu João eram muito, muito, muito unidos. Ambos não tinham filhos, eles estavam ali na faixa dos quarenta e poucos. — E não tinham se casado também. — Eles eram bem unidos e moravam na mesma casa. Uma casa alugada. Até que o seu João, — Que era funcionário público. — teve a oportunidade de comprar um lote. — Um terreno. — E era assim, era um terreno do lado do outro, tinham dois lotes para vender. Só que a dona Cleonice ela conseguia pagar a parcela, mas ela não conseguia comprovar renda, porque ela era diarista. E aí ficou combinado que o seu João tiraria os dois lotes no nome dele, só que a dona Cleonice pagando um e ele pagando o outro lote.
Deu tudo certo, o financiamento foi aprovado e aí eles faziam dessa forma, né? Dona Cleonice que era diarista dava dinheiro na mão do seu João e ele pagava ali a parcela dos dois terrenos. E esses dois terrenos saíram no nome dele, né? Só que jamais a Cleonice desconfiaria do seu João, né? De qualquer coisa… — Eles eram bem unidos mesmo. — Imagina, assim, ó… Um lote do lado do outro, eles construíram uma casa geminada… — Então ali, parede com parede. — A casa da dona Cleonice para o lado do terreno dela e a casa do seu João para o lado do terreno dele. Só que tinha uma porta ali no meio, né? Então, assim, as duas casas eram interligadas de tão unido que eles eram. — E isso, gente, durou, sei lá, 15, 16 anos. —
E eles terminaram de pagar o terreno, as casas já estavam construídas, eles tinham uma vida, assim, de muito amor, muito próxima… Só que depois que estava tudo pago, o seu João começou a se preocupar, porque ele queria passar o terreno da dona Cleonice para o nome dela. Só que não era barato, eles não tinham esse dinheiro, né? Mas era uma preocupação que o seu João tinha. E a Dona Cleonice falava: “Não, bobagem… A gente vai viver aqui ainda muito tempo”. — “Nã nã nã, tá tudo certo”. — E aí passou mais um tempo e o seu João frequentava um bar… — Perto ali da casa deles. — E, nesse bar, ele conheceu uma moça. — Chamada Tânia. — Então, nessa época, o seu João já estava com quase 60 anos e a Tânia tinha uns 26 anos…
E o seu João ele ficou doido na Tânia… [efeito sonoro de guitarra] — Realmente ele virou a cabeça assim, ficou doido. — E aí a Tânia… — Não sabe se gostando realmente dele ou não, foi morar com seu João. — E a primeira coisa que ela fez foi botar uma parede ali onde tinha aquela porta que dava pra casa da Dona Cleonice. Então aí a dona Cleonice ficou arrasada, né? Porque a Tânia mal deixava o seu João falar com as pessoas e, nessa época, seu João já estava aposentado e ela que ficava com o cartão da aposentadoria dele… — Aquela coisa, né? — E aí a Tânia às vezes ia para os forrós da vida e, assim, sumia três, quatro dias… Seu João ficava doido procurando por ela, achando que, sei lá, ela tinha sido sequestrada, mas não… — Ela só tava, sei lá, em festas. —
Nesse ritmo, a coisa foi aí durando uns dois anos. Até que seu João começou a ficar doente, doente, doente… [efeito sonoro de pessoa tossindo] e ele morreu… Dona Cleonice dizia para os familiares que achava que a Tânia tinha envenenado seu João, mas isso era mera especulação, não teve inquérito, não teve nada… —Seu João morreu no hospital, então, né? — Eu acho que se tivesse alguma suspeita, eu acho que o hospital avise a polícia, essas coisas… Mas dona Cleonice tinha isso para ela, de que a morte de seu João era culpa da Tânia. — Pois bem, seu João falecido, aquele baque, dona Cleonice ficou mal e tal… E ela estava muito triste lá na casa dela, quando chega o irmão da Tânia… — Que ninguém nem sabia que Tânia tinha irmão. —
E avisa que a dona Cleonice ia ter que sair da casa, porque aquela casa era da Tânia. E aí a família toda ficou num alvoroço, porque todo mundo sabia que tinha sido a dona Cleonice que tinha quitado as prestações, nunca tinha nem atrasado… Mas ela não tinha comprovantes de nada. — Quem pagava, ia no banco, na lotérica pagar era o seu João. — E aí a família foi atrás de um advogado e eles descobriram que a dona Cleonice era considerada uma herdeira colateral. Então, se tivesse na frente dela filhos do seu João ou uma esposa do Seu João, a esposa teria direito, e Dona Cleonice não poderia nem tentar brigar ali por uma herança, nada. E aí como ela já estava há dois anos com ele, enfim, né? Ela ia comprovar lá que ela vivia com o seu João, ia entrar na Justiça para ficar com a casa.
Só que aí o advogado falou para dona Cleonice: “Olha, não sai da casa, espera ela ir atrás, porque ela vai precisar ter uma grana também pra fazer isso”. E dona Cleonice continuou na casa. Só que aí, essa Tânia, ela pirraçava… Fazia altas festas e descobriram que esse irmão da Tânia não era o irmão, era um namorado… E todo mundo depois começou a achar que ela já estava com esse cara, né? — Enquanto estava com seu João. — E depois que seu João morreu, ela não respeitou nem a missa de sétimo dia… Antes disso ela já estava fazendo festa na casa. E aí esse ritmo de festa durou uns 40 dias.
Depois desse período, uma noite qualquer aí, dona Cleonice estava dormindo. — Agora ela já precisava de um remédio para dormir de tanto nervoso que ela vinha passando, né? — Quando ela ouve uma gritaria… [efeito sonoro de mulher gritando A Tânia já tinha colocado o rapaz para morar com ela na casa, né? E a parede… — Era parede com parede, então dona Cleonice ouvia tudo. — E aí ela ouviu uma gritaria, “socorro, socorro”, assim, meio zonza do remédio, não levantou. — Para ver do que se tratava. — No outro dia de manhã ela ficou sabendo por vizinhas que a Tânia tinha saído correndo, chamando ali na vizinhança por socorro, porque o seu João — Falecido seu João, finado seu João. — estava enforcando o namorado da Tânia na cama. — E aí, lógico que ninguém acreditou nela, né? —
Isso aconteceu mais umas duas noites. — Do cara ser agredido por um espírito que a Tânia fala que era o seu João. — E o cara vazou, foi embora… — Abandonou a Tânia e foi embora, não voltou mais… —E a partir desse dia que o cara foi embora, a dona Cleonice começou a ouvir também… Só que não dentro da casa. No quintal, eles tinham um quintal bem grande e tinha bastante árvore e era uma época, assim, outono que as folhas estavam caindo e sempre foi o seu João que limpou o quintal, varreu as folhas e, depois que ele faleceu, a dona Cleonice ia contratar alguém para fazer, porque ela não tinha saúde para fazer isso. Só que não tinha nem dado tempo, ela nem tinha pensado nisso. E aí o que acontecia, gente? Ela e também a Tânia ouviam o seu João andando pelo quintal. [efeito sonoro de passos sob folhas]
E ele andava, andava e pisava nas folhas, você escutava aquele barulho de passos nas folhas… E aí a dona Cleonice não escutava ele falar nada, mas a Tânia dizia que escutava ele falando: “Vai embora, vai embora” [efeito sonoro de voz assustadora] Isso durou ali umas semanas e a Tânia não aguentando mais, pegou as coisinhas dela… — Ela não tinha nada formalizado, ela só morava com o seu João, né? Mas ela tinha direito, se ela quisesse, de entrar na Justiça para pedir ali pela casa e ficar com os dois lotes, né? — E aí a Tânia foi embora, sumiu… E aí a dona Cleonice disse que parou de ouvir o seu João no quintal, mas ouvia o seu João agora na casinha, que era parte dele da casa. — E aí o que ela ouviu o seu João fazer? —
Ela ouviu o seu João bater naquela parede onde tinha uma porta. — Lembram onde tinha uma porta? — E ele batia, batia, batia ali… Como se quisesse passar por aquela parede. E aí a dona Cleonice não tinha medo dele. — Se fosse eu já estava em Marte correndo. — E aí dona Cleonice mandou derrubar a parede e botar a porta de novo. — Onde tinha a porta, que era a ligação das duas casas, né? — E aí ela escutava às vezes a porta abrindo e o seu João passando da casinha dele para a casinha dela. — Só que ela não via ele, ela só escutava. — E isso durou alguns anos… — Alguns anos. — E aí os parentes tinham medo de ir lá visitar ela e tal… Às vezes iam e escutavam algum barulho lá na casa do Seu João…
Ele tinha um radinho e às vezes o radinho ligava. — [risos] Deus é mais. — E dona Cleonice nunca teve medo. Um dos sobrinhos lá que tinha um pouco mais de dinheiro acabou fazendo as coisas lá e colocaram tudo no nome da dona Cleonice. Só que passou um tempo também, dona Cleonice faleceu e, um pouco antes de falecer, ela começou a ver o seu João… Só que ela falava assim para os outros irmãos, para os sobrinhos, que ela estava preocupada… — Porque ela via o seu João todo sujo, esfarrapado, andando pela casa… E antes ela não via, ela só ouvia, né? E não tinha medo. E agora ela não tinha medo também, mas ela estava preocupada. —
E aí dona Cleonice faleceu… Um dos sobrinhos tentou morar lá na casa e não conseguiu, porque ele ouvia o seu João também e eles acabaram tendo que fazer um novo inventário… Tudo de novo. — Eles já tinham feito para passar pro nome da Dona Cleonice, ela morreu e fizeram tudo de novo. — Para poder dividir ali e vender… E venderam. E aí não se sabe se quem comprou foi morar na casa ou demoliu. — Porque eram casinhas bem simples, né? — E aí você vê, né? Eu fiquei boba… — Não com a parte do fantasma. — Mas com essa parte de saber que a dona Cleonice não tinha direito a nada, que por ser irmão e a sobrinha—neta dela estava me explicando… Que parece que irmão você pode, se você tiver um testamento, você não precisa por seu irmão, você pode excluir, porque esses chamados herdeiros colaterais que são… — Parece que é irmão, primos, tios, sobrinhos… Você não precisa colocar na herança se você não quiser, alguma coisa assim… —
E aí eu fiquei mais passada com isso na história, de saber que a dona Cleonice tinha quitado, gastou anos e anos pagando e não ia ficar com nada… Do que com a parte do seu João assombrando ali, [risos] ele porque pelo menos seu João colocou a Tânia para correr, né? — Essa é a parte boa. — Ela nunca mais apareceu. E não entrou na justiça, nada… E aí fica aí, né? Mais essa história de que, mesmo que seja o seu irmão, que você ama, sua irmã que você ama, sei lá, tem que ter um documento, tem que ter alguma coisa comprovando que você está pagando se não está no seu nome… Porque se essa sua irmã falecer, seu irmão falecer e ele tiver herdeiros, provavelmente você dançou… Se não forem pessoas honestas e tal… — Que, sei lá… — E fizerem a doação para você da parte lá que seria sua, lascou.
[trilha]Assinante 1: Oi, gente, eu sou Gabriel de Goiânia. Eu acho que a história Terreno deixa aí pra a gente uma reflexão de que tudo o que a gente precisa fazer para uma outra pessoa, seja de bens materiais ou de algo que a gente quer beneficiar, a gente tem que deixar tudo bem registrado em vida, para que depois, na nossa ausência, as pessoas às quais a gente ama não sofram na mão de terceiros, né? Que a gente não está esperando que sofram aí. E gostei muito que ele conseguiu colocar a Tânia para correr aí, Tânia impostora e que a irmã conseguiu aí o seu desfecho em vida, de herdar aquela casa que por missão, por pagamento seria sua, né?
Assinante 2: Oi, gente, boa tarde, meu nome é Nátaly, sou de São Paulo. Eu ouvi a história da dona Cleonice e seu João e, bom, é um exemplo clássico da importância da gente sempre documentar os nossos bens, porque depois que separa, depois que a pessoa se vai dessa para outra melhor, deixa de ser “meu bem” para lá e “meu bem” para cá, para se tornar “meus bens” para cá e “meus bens” para lá, né? Outra coisa, a dona Cleonice falou que estava vendo o seu João no final da vida, que estava preocupado com ele porque ele estava… Ele não estava com uma parte muito boa, pode ser que ele tenha ficado tão apegado a casa e tão apegado à vida que ele tinha lá, que ele não conseguiu descansar em paz, que ele preferiu ficar no lugar. É muito comum a pessoa que está próxima do fim da vida ver algum espírito, de algum ente que aparece para ela, então, eu acredito sim que a Dona Cleonice tenha visto o seu João, seria bom fazer algum tipo de prece pra ele ou procurar um Centro para ver se consegue encaminhá-lo para um local, para que ele possa viver em paz, enfim… Boa sorte aí.
Déia Freitas: Então fica aí o ensinamento, tá bom? Então um beijo e eu volto em breve.
[vinheta] Quer a sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Picolé de Limão é mais um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]