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título: véu
data de publicação: 31/07/2025
quadro: luz acesa
hashtag: #veu
personagens: otávio

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Shhhh… Luz Acesa, história de dar medo. [vinheta]

Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei para um Luz Acesa. — Essa história aconteceu quando o Otávio tinha 17 anos, na cidade dele, há muito tempo já. — E hoje vou contar para vocês a história do Otávio. Então vamos lá, vamos de história.

[trilha]

Otávio estava para se alistar ali no exército — estava dando o tempo dele — ele ia completar 18 anos, então ele queria aproveitar um pouquinho ali antes de se alistar… Então ele começou a ir para a praça a noite. Na cidade ali não tinha muita coisa para fazer, os amigos dele iam para a praça, Otávio nunca foi de sair muito, mas como ele estava com essa questão do exército, ele falou: “Bom, quero dar uma aproveitada”. Ele ia pra praça, ficava geralmente uma hora da manhã, Dona Palmira, sua mãe, sempre reclamava e falava: “Olha, você tá na rua essa hora… É perigoso”. E o perigo para Dona Palmira é que eles moravam de frente para a entrada do cemitério da cidade… —  Como que eu vou explicar isso? — 

A rua que dava para o cemitério era uma rua sem saída, numa ponta da rua era o portão do cemitério, na outra ponta da rua, de frente, era o portão — de frente — era o portão da casa do Otávio. E você chegava por essa rua pelo meio, então você vinha aqui pelo meio e, se você fosse pra esquerda, você ia pro cemitério e dos dois lados ali da rua tinham casas até chegar no cemitério. E se você fosse pra direita, dos dois lados da rua tinham casas, só que lá no final não tinha saída também, porque era a casa do Otávio. O perigo pra da Dona Palmira era porque ele chegava num horário que Dona Palmira considerava ali depois da uma hora da manhã, a hora das almas. Depois da uma da manhã, muita gente via espíritos circulando ali naquele cemitério, e os espíritos eles ficavam no cemitério e eles iam até o portão… Se o portão do cemitério estivesse aberto, esses espíritos saíam e circulavam pela cidade.

Se o coveiro — vamos por aqui um nome, “Seu Raimundo” —, se o Seu Raimundo trancasse com corrente o portão, os espíritos não passavam. — Não faz sentido, mas é o que Dona Palmira falava. — O seu Raimundo às vezes dizia que determinado dia, ele não poderia passar a corrente, ele teria que deixar o portão aberto e ninguém entendia bem, mas o portão do cemitério ficava aberto, assim, você não via acontecer nada porque a maioria da população ali tava dormindo. Menos Otávio e seus amigos. Um dia Otávio está voltando para casa dele, é mais ou menos uma e pouco da manhã, vinha da praça ali, passava por algumas ruas, ele tinha que andar pela rua que dava na rua dele e virar para a direita — se ele fosse para a esquerda, era o cemitério — e normalmente ele nem olhava para o lado do cemitério, ele ia ali com a mão no bolso, olhando para baixo, zero medo, e já ia para o final da rua ali, que era a casa dele. 

Quando ele virou a direita ali para a casa dele, tinham outras casas dos dois lados da rua, tudo escuro, uma luz muito fraca num poste longe e, perto daquele poste, ele viu uma mulher… Aquele horário da manhã? Uma mulher na rua? “O que teria acontecido?”, pensou Otávio. Ela estava com uma saia até o pé, cinza, uma blusa preta, assim, que até mais ou menos da cintura por cima da saia um pouco e ela tinha um véu preto cobrindo o rosto. — Era um véu que cobria todo o cabelo dela e o rosto. Sabe um véu que tem umas mulheres que vão na igreja, assim? —  Qualquer outra pessoa da cidade ia olhar para ver se o portão do cemitério estivesse aberto. — Otávio nunca acreditou em nada e nunca teve nenhuma questão aí com assombração… Ele não tinha medo de nada. — Tinha casos, por exemplo, do Seu João Leiteiro, que um dia estava ali entregando os vidros de leite, quando ele encontrou uma criança na rua e ele começava a entregar o leite ali quatro horas da manhã… Seu João Leiteiro chegou perto, falou: “Menina, o que está acontecendo?” e a menina não levantava, ficou com as mãozinhas assim no peito e cabecinha baixa.

Quando ele pegou a criança pela mão, assim, meio que enérgico, tipo: “O que você está fazendo aqui na rua?”, aquele braço virou pó… Virou uma caveira e do nada virou pó e veio pra cima dele e ele ficou doente um ano… E aí quando eles foram ver, era o dia do cemitério estar com o portão aberto. Aí você vai perguntar: “Mas que dia que o coveiro lá, Seu Raimundo, abre o portão”, não tinha um dia certo. — Diziam que ele era avisado que ele tinha que deixar o portão aberto. E eu achei isso fascinante, gente, isso pra mim num filme… — Essa mulher chorando ali, Otávio: “Não é da minha conta” e ele foi passando pelo lado dela, assim, ele tinha que passar por ela pra ir pra casa dele. Quando ele ia passar por ela direto, alguma coisa disse pra ele olhar pra ela… Quando Otávio olhou, ela estava com as mãos por baixo do véu, então ele não conseguia ver as mãos dela, nem o rosto, mas via que ela tinha corpo bonito e, pelo jeito que chorava, ela parecia ser jovem. Quando ele olhou direto para essa moça, alguma coisa interessou ele, assim: “De repente é alguém daqui que eu não lembro, não conheço, vou chegar perto”. 

Ele desistiu de passar reto e foi para perto dessa moça, Otávio foi chegando perto e essa moça chorando, chorando, chorando… Quando ele estava a centímetros dela, mas numa distância, sei lá, respeitando o espaço pessoal da moça, ele falou: “Moça… Moça, você precisa de ajuda?” e, no meio do choro, ele escutou a moça falando: “Vem aqui” e ele foi chegando mais perto, porque ela estava falando de uma maneira tão baixinha, que ele não estava conseguindo ouvir e, numa atitude sem pensar, o Otávio levantou o véu do rosto dessa moça… Ela estava com as mãos na frente do rosto e as mãos não condiziam nem com a voz e nem com o corpo… Eram mãos, assim, bem idosas e machucadas… E na ponta não eram unhas — parecia que era uma coisa só, assim, pontuda, mas não era unha — e quando ele assustou, ela tirou a mão do rosto e, no lugar do rosto, tinha só uma boca grande com um dente, que parecia agulha…

E parece que aquilo veio para cima dele e ele caiu ali no chão e foi encontrado por alguém que acordava cedo ali… — Ele teve uma queda da própria altura, então ele se machucou bastante nesse desmaio que ele teve. — E, a partir daí, o Otávio começou a ver essa mulher de véu aonde ele ia. Quando ele entrava em casa, ela não entrava junto, mas às vezes ele olhava e via essa mulher do véu flutuando meio de longe atrás dele. Como Otávio não acreditava em nada, ele não queria acreditar naquilo, então ele não contou pra ninguém. — Aquele tombo que ele teve, tanto Dona Palmira quanto os vizinhos ali botaram na conta, sei lá, de uma bebedeira, ele levou uma puta bronca, enfim… — E vez ou outra o Otávio disse que via essa mulher de véu atrás dele, teimoso, ele falou: “Não vou parar minha rotina, agora eu já sei como é a cara dela, ela não tem cara. Se ela vier pra cima de mim, eu vou ficar parado”, só que ela não vinha.

E foi chegando a época dele se alistar, ele teria que ir para uma outra cidade e ele estava com medo de, de repente, ela ir atrás dele e lá no exército alguém falar que ele era louco e tal. — E aí o Otávio resolveu fazer uma coisa que eu jamais faria… — Voltando um dia da praça, ela tava de longe atrás dele, aquela saia arrastando no chão e, Otávio em vez de virar pra direita para casa dele, virou pro outro lado e foi para o cemitério. Naquele dia, o portão do cemitério estava trancado com cadeado, Seu Raimundo tinha trancado. Ele chegou até o portão, segurou as grades, olhou para a mulher que estava com o véu e falou: “Vem”. — Gente… Otávio um rapazinho… — E ela não vinha… Ele criou coragem e passou por ela… O que o Otávio me falou? Que ele teve a impressão que ela não levantava o véu sozinha, ela não conseguia, mas ela queria que ele levantasse o véu e ele não levantou mais, porque ele sabia o que tinha embaixo já. 

E aí, no dia seguinte, pediu pro Seu Raimundo deixar o portão do cemitério aberto… Seu Raimundo falou: “Eu não posso deixar aberto, mas eu vou deixar encostado sem a corrente”, não perguntou o que ele ia fazer, era de madrugada, o Otávio abriu um dos lados do portão e entrou no cemitério. O cemitério todo escuro, a lua estava bem brilhante, então dava mais ou menos para ele ver os túmulos ali e ela entrou — essa mulher do véu — atrás do Otávio e foi andando ali entre os túmulos. — Ele ficou parado e ficou olhando. — Ela andou, andou, andou e, de repente, ela parou num túmulo e sumiu. Otávio foi embora… No dia seguinte, ele acabou esquecendo, mas no outro dia ele foi mais ou menos ver onde tinha uma sepultura de alguma mulher, né? E, quando ele chegou perto desse lugar onde ela sumiu, era uma sepultura que estava muito mal—cuidada, que não tinha foto, não tinha nada, mas ela tinha uma trinca no cimento, assim, uma rachadura — na tampa de cimento ali — e naquela trincazinha tinha a ponta do véu e o Otávio foi embora, nunca mais voltou… 

Tempos depois ele contou pra mãe dele e a Dona Palmira falou que essa história da mulher do véu era muito antiga — muito mesmo — e que era uma viúva que o marido tinha morrido e ela tinha enlouquecido e ela rodava pela cidade com esse véu na cabeça, assim, ela não comia mais… Ela ficou a doida da cidade, mas isso quando Dona Palmira era criança… E já tinha essa história da mulher do véu. Como ela não tinha mais o marido, quando ela via que tinha alguém na cidade para morrer, ela ficava ali circulando… Então, ela era meio que associada ali naquela cidadezinha como a morte da cidade. — Então, quando alguém via a mulher do véu, é porque tinha alguém que ia morrer. — E ela andou muito tempo com o Otávio, muito tempo com o Otávio e ele não morreu, né? Ele foi servir o exército e tal e nada aconteceu. Dona Palmira fala pra ele assim: “Você não morreu, mas você não sabe se ela tava circulando atrás de alguém ali”, porque na cidade vai morrendo, gente, enfim… 

Se ele tivesse contado pra Dona Palmira quando aconteceu e ela sabendo da história, ela ia procurar quem tava para morrer ali pra saber se fazia sentido, pelo menos, mas ele não contou, contou anos depois. E hoje, Seu Otávio, nos seus aí 79 anos, diz ele que ainda não acredita muito nas coisas, mas que isso da mulher do véu aconteceu com ele e que de cara ele achou que era uma mulher de verdade… Depois que ele viu que era uma assombração, ele tentou resolver do jeito dele ali, com 17 anos, mas muita coragem, né? Porque, enfim… E ela voltou para a sepultura dela e será que sai quando tem alguém aí, como eu digo, em rota para morrer? Jamais saberemos, espero.  A mulher era só… E por que ela não tinha rosto? Ela só tinha a boca e os dentes como se fossem agulhas? Não foi legal ela também, né? Não era legal… O que vocês acham?

[trilha]

Assinante 1: Oi, gente… Aqui é a Patrícia. Eu falo dos Estados Unidos. Seu Otávio, eu só tenho a dizer que o senhor deveria ser considerado um herói na cidade, devia ter uma estátua de bronze em homenagem ao Seu Otávio por ter resolvido um problema antigo, assim… Ele resolveu um problema da cidade. A Mulher do Véu era uma questão para todo mundo e Seu Otávio resolveu ali, né? Um jovenzinho… Devia ter uma estátua de bronze do Seu Otávio ali no centro da cidade, na praça central, porque ele é um herói da cidade. Fica aí para a cidade do Seu Otávio essa sugestão, que ele deveria ser homenageado. Um beijo, gente. Um beijo, seu Otávio. 

Assinante 2: Oi, gente, aqui é a Jessi, de Recife. Que jovem corajoso… Com 17 anos já realizar esse tipo de feito sem aparentemente ter esse conhecimento espiritual ou alguma religião… E nessa história tem muitas características que batem com as características de uma mitologia celta de Banshee, que é a lenda do espírito feminino. eEsse espírito é responsável por anunciar a morte e ela também faz isso gritando, lamentando, emitindo sons. Pode ser que realmente tenha acontecido aí e que tenha a ver com essa lenda, né? Um beijo pra todos. 

[trilha]

Déia Freitas: Comentem lá no nosso grupo do Telegram, sejam gentis com o Seu Otávio. — Deus me livre… — Um beijo e eu volto em breve. 

[vinheta] Quer sua história contada aqui? Escreva para naoinviabilize@gmail.com. Luz Acesa é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]

Deus me livre… Deus me livre. Detesto véu, qualquer véu. Um beijo e eu volto em breve.