título: alessandra
data de publicação: 08/01/2022
quadro: alarme
hashtag: #alessandra
personagens: alessandra
TRANSCRIÇÃO
[vinheta] Atenção, Alarme. [vinheta]Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. E cheguei aqui no quadro Alarme para mais um episódio em parceria com o Fundo Brasil de Direitos Humanos. [efeito sonoro de crianças contentes] — Meu publi. — O Fundo Brasil que completou 15 anos agora em 2021 é uma fundação independente, que financia e dá suporte a pequenos grupos e coletivos que defendem os direitos humanos em todo o Brasil. E, para comemorar, eu estou aqui para contar quatro histórias de mulheres maravilhosas e seus projetos que tiveram o apoio do Fundo. Eu vou deixar o link do Fundo Brasil aqui na descrição e você pode voltar o feed e ouvir a história da Lília e da Alexandra que eu já contei aqui.
Hoje eu vou contar para vocês a história da pedagoga Alessandra Félix, que é uma das cofundadoras do coletivo Vozes de Mães e Familiares do Sistema Socioeducativo e Prisional do Ceará. Essa é a história de como uma mãe convencional se tornou uma mãe institucional. Então vamos lá, vamos de história.
[trilha]A Alessandra é uma mulher negra, cearense, mãe, pedagoga e ativista dos direitos humanos. Ela teve seu filho com 20 anos e criou seu bebezinho sozinha e é essa história que eu quero contar hoje para vocês, a história de uma mãe solo, preta, periférica, sem apoio e dos eventos aí, né? — Que apareceram na vida da Alessandra e que… — A levaram para o caminho do ativismo dos direitos humanos.
A família toda da Alessandra é de uma cidade do interior do Ceará, chamada Ibiapina e a mãe da Alessandra, a dona Isaura, quando era jovem resolveu sair ali de Ibiapina e ir para Fortaleza em busca de uma vida melhor, né? [efeito sonoro de escapamento de automóvel ao fundo] De poder trabalhar num lugar melhor e poder mandar dinheiro para a família em Ibiapina. E assim ela fez… Foi para Fortaleza, começou a trabalhar na casa lá de uma família, só que aí ela descobriu que ela estava grávida… E nossa, né? O que fazer? Trabalhando na casa lá de uma família que tinha contratado ela — A dona Isaura. — e não sabia que ela estava grávida… — Ela ainda muito jovem… —
Ela, quando não deu mais pra esconder a barriga, contou ali, né? — Na casa que ela trabalhava. — E ficou resolvido que assim que o bebê nascesse, a Isaura não ia ter como sustentar o bebê, trabalhar e cuidar de tudo sozinha, então ela ia mandar esse bebezinho — Que era a Alessandra. — de volta para Ibiapina, para ser criada ali pela irmã da dona Isaura e pelo pai da dona Isaura. — Pra família ali, materna. — E assim foi feito, a Alessandra cresceu, num lar, numa família pobre, mas com muito amor e foi criada com muito amor e, de vez em quando, ela ia para Fortaleza ficar com a mãe. — Ali na infância. —
Quando ela terminou o ensino fundamental, ela foi para Fortaleza de vez ficar um tempo com a mãe e cursar o ensino médio. Quando a Alessandra se mudou de vez para Fortaleza para morar com a mãe, a mãe já não trabalhava em casa de família, ela já estava trabalhando numa escola como auxiliar de serviços gerais. E ali na escola a mãe dela foi progredindo também, passou ali de auxiliar de serviços gerais para área da merenda. — Interessante, né? Como a história da mãe da Alessandra é muito parecida com a história da mãe da Lília, né? Até essa ascensão dentro da escola ali em vários cargos e na merenda… —
A dona Isaura depois virou responsável ali por toda a área de cozinha da escola, então por todas as merendeiras… E a Alessandra já via na mãe essa questão do ativismo por direitos, a dona Isaura ela já era ativista, tinha um centro — No bairro que elas moravam… — Um centro social chamado “César Cals”, no bairro Planalto do Pici e a dona Isaura já batalhava ali no centro para que as pessoas da comunidade tivessem acesso a cultura, a lazer, a utilizar os equipamentos do centro, né? E tivessem direito a arte também… Então a dona Isaura já estava aí nessa batalha pela galera ali da comunidade.
E o sonho da dona Isaura era que a Alessandra cursasse uma faculdade, a Alessandra também tinha esse sonho, só que quando Alessandra fez 19 anos, ela viu ali a história da mãe delas se repetindo… — Porque a Alessandra também engravidou, jovem como a mãe. E também de mãe solo aí, de um pai que, enfim, não assumiu nada. — E aí ela teve o bebezinho, teve o filho… Tinha o suporte da mãe… — Diferente da dona Isaura, que quando estava em Fortaleza sozinha não tinha nenhum suporte, agora a Alessandra tinha o suporte da mãe. — E ela teve o bebezinho e, com esse apoio da mãe, a Alessandra conseguiu o seu primeiro trabalho ali de carteira assinada, né? — Numa gráfica. — E todo o trabalho também que aparecia ela pegava. — Enfim, agora ela tinha um filho para criar, né? Para sustentar. —
E aí surgiu uma oportunidade dela ser ali auxiliar de classe numa escola particular no bairro dela. E era uma escola particular no bairro que ela já morava e mora até hoje, o bairro Henrique Jorge. Então, poxa, ficava super perto, era já uma coisa que o sonho da Alessandra sempre foi ser professora, então ela entrou nessa escola como auxiliar de sala de aula e, poxa, tinha um caminho todo pela frente… Já estava na área que ela queria, né? E dentro dessa escola particular, a Alessandra foi se destacando… De auxiliar ali de sala de aula, ela ocupou uma vaga, — De uma professora que não conseguiu ali assumir as aulas no começo do ano. — e aí com todo suporte pedagógico dessa escola, ela foi orientada a fazer o quarto pedagógico, né? Que seria ali mais um ano pra ela conseguir entrar ali na área de orientação da escola. — A ideia era fazer o quarto pedagógico e depois já tentar a faculdade de pedagogia. —
E nesse percurso todo, o bebezinho já não era um bebezinho, já estava começando ali a entrar na adolescência, né? A Alessandra já era coordenadora dessa escola. — Que ela trabalhava. — E aí veio a dificuldade para conciliar tudo o que ela fazia mais ali a criação do filho, né? Mas ela ainda tinha o suporte da mãe. Era difícil? Era, mas ela tinha a mãe ali de apoio. Infelizmente, em 2010, a dona Isaura teve um ataque do coração, uma coisa muito repentina e faleceu. [música triste ao fundo] E a Alessandra se viu agora sozinha… A mãe tinha deixado uma casa para Alessandra, né? — Então ela não tinha essa preocupação da moradia. —
A dona Isaura batalhou muito, conseguiu comprar uma casa numa ocupação e estava tudo regulamentado, tudo certinho e a casa ficou para a Alessandra. Só que agora aquele suporte para ela poder trabalhar e estudar ficou mais complicado sem a dona Isaura, né? Agora sozinha, em Fortaleza, com o filho ali no início da adolescência, sem a mãe como base… — Porque ela contava com a mãe dela para tudo. — As coisas começaram a complicar. Agora a Alessandra que dava aulas e era coordenadora — Da escola. — levava o filho de manhã para a escola, então, ele estudava… À tarde que ela era coordenadora, ele ficava na creche ali com ela, então ela conseguia passar o dia todo com o filho. Quando era cinco horas, eles iam para casa, ela arrumava a janta, né? Ele tomava banho, tudo direitinho e, à noite, ela ia para a faculdade e ela não tinha como levar o filho…
Então, aí ele ficava aos cuidados da vizinha, né? — A vizinha que ficava de olho ali no menininho de 10 anos da Alessandra. — Isso funcionou até que ele fez 11 anos e tinha dia que a Alessandra chegava da faculdade e ele não estava em casa. E a vizinha não conseguia mais ter o controle, né? Ela avisava, estava sempre de olho, estava sempre atrás… Isso acontece muito, né? Na periferia. Das vizinhas ali olharem as crianças e tal… — Isso é uma prática mais antiga até, né? Eu lembro que quando eu era criança era assim também, inclusive minha mãe falava para as vizinhas assim: “se achar na rua, em qualquer lugar, pode trazer pendurada pela orelha.” [risos] E era assim que às vezes as minhas vizinhas me traziam, pela orelha pra casa. Então, assim, não adianta… Eu estava, sei lá, num bairro vizinho aqui com as minhas amigas e passava uma vizinha, eu tinha, sei lá, 10, 11 anos e passava uma vizinha minha, ela falava: “Pra casa agora, vamos para casa”. E aí eu tinha que vir, tinha que obedecer todas as vizinhas, enfim… Era assim. —
E a Alessandra também contava com essa rede de apoio ali das vizinhas, só que assim, né, gente? Tem uma hora que as crianças obedecem e tem hora que não… E isso aconteceu com o filho da Alessandra. Chegou uma hora que ele não obedecia mais à vizinha, então ela chegava em casa à noite da faculdade, ela que passava todo o dia com ele, o dia inteiro eles ficavam juntos e ele não estava. — E é aquela coisa, gente, a vida não espera… Era a oportunidade… Uma oportunidade muito difícil que apareceu pra Alessandra cursar a faculdade, ela não podia abrir mão disso e ela também não abria mão da educação do filho. Então ela ali se desdobrava para fazer tudo, pensando nas metas que ela tinha, pensando no futuro mesmo do filho dela.—
Então era muita coisa, mas ela tinha que dar conta, não tinha o que fazer… — E conversando com a Alessandra a gente falou disso, né? Da maternidade… Do lado da maternidade que também pode te adoecer, que também te envelhece, que também te deixa cansada, que também te tira a feminilidade, enfim, né? — Ela tinha que fazer tudo e ela supria o que ela conseguia desse filho, né? Mas ninguém consegue suprir tudo de um outro ser humano, né? E aí era nesse ponto que ela estava, ela dava tudo o que ela podia, fazia tudo o que ela podia, mas não era o suficiente. Então ali entre os 11 e os 14 anos, o filho da Alessandra já tinha ali os colegas do bairro e tal, gostava de ficar ali um pouco na rua com esses colegas e tal.
A Alessandra já percebia que ela perdia o controle. — Por quê? — Porque ela não sabia direito com quem ele estava, né? Porque ela chegava da faculdade e às vezes tinha que sair procurando por ele e tal, só que ainda era uma época que, no bairro da Alessandra, não existiam os grupos armados. — Isso foi acontecer lá por 2015. — E o engraçado é que os problemas da Alessandra mesmo começaram com o filho na escola, porque até então ele estava sempre com ela… Ele fazia reforço escolar, ela fazia tudo o que ela podia… E quando ele estava em casa, ou ele estava jogando videogame ou ele estava ali na rua. — Jogando bola. —
Só que na escola ele se envolveu com uma galera e que culminou num primeiro evento de uma notificação do Conselho Tutelar. — Tipo, de que ele estava andando aí com uma galera que a gente sabia que não era legal. — E aí com essa galera da escola, ele ali com seus 15 anos, já queria ir em festas, já conheceu ali o álcool… E aí ficou ainda mais complicado para a Alessandra conseguir controlar esse filho. E a gente está falando aqui de uma criança que sempre estudou, sempre teve todo o apoio da mãe, sempre teve atividades e reforço escolar, enfim… Mas que a Alessandra não conseguia ficar o tempo todo. — Com o filho, né? — Porque ela precisava trabalhar, precisava colocar a comida dentro de casa e precisava também terminar o curso dela de faculdade pra poder manter ali o emprego que ela tinha.
Até que um dia o filho da Alessandra junto com outros garotos roubaram uma pessoa na orla da praia, e aconteceu a primeira apreensão do filho da Alessandra. [efeito sonoro de sirenes ao fundo] Nessa primeira apreensão do filho da Alessandra, ele entrou num processo de semiliberdade, que era o que? Ele passava a semana apreendido e podia passar o final de semana em casa. E, assim, né? O que você supõe? Que uma criança apreendida, ela vai… — Sei lá, aprender alguma coisa no espaço que está, enfim, né? Só que não era o que acontecia. — Quando o filho dela chegava no final de semana, ele relatava toda a violência, todo o abuso, todo o medo… Tudo o que ele sofria lá dentro.
Então, aquela pressão que era para socioeducar e ele sair melhor, a Alessandra não reconhecia mais o filho dela. Ele não estava melhorando… Ele se transformou em outra pessoa. E essa foi a primeira experiência da Alessandra com essa medida chamada de liberdade assistida, que o filho dela teve quando foi apreendido pela primeira vez. Esse era o ano de 2014. E a real: é que o filho da Alessandra saiu do sistema muito, muito, muito pior do que ele entrou. E aí ele foi cooptado pelo tráfico de drogas e começaram as brigas em casa, porque Alessandra não aceitava e ele optou por sair de casa e viver na rua… E viveu em abrigos, entrou de vez para o crime.
E aí em 2015, — No ano seguinte. — ele foi apreendido novamente e agora já para cumprir a medida socioeducativa em regime fechado e foi quando ele ligou para a mãe. [efeito sonoro de teclas de telefone sendo discadas e chamando] e pediu que ela fosse, que a Alessandra fosse visitá-lo. Porque ele não ia poder sair mais… E ela conheceu o sistema, começou a conhecer o sistema por dentro. E quando Alessandra viu todo aquele horror, toda aquela violência, como era o sistema por dentro, onde o filho dela estava preso, ela começou a se organizar com algumas mães que também tinham filhos ali, e aí ela percebeu que tudo o que ela estava aprendendo na faculdade… — Ela tinha entrado em contato com o ECA, né? — Tudo o que ela estava aprendendo ali na faculdade não era aplicado, né? — Para aqueles jovens. — Era tudo só no papel…
O sistema ele tinha sido criado para reeducar, só que ele não reeducava, ele transformava os jovens, às vezes até que só tinham pequenos delitos, — Como era o caso do filho da Alessandra. — em criminosos. Ela ficou em choque com tudo o que ela viu… Começou a organizar ali as mães, mas ela não sabia também o que fazer, por onde começar. A Alessandra via as mães entrando e saindo de lá chorando, entre elas a própria, né? — E não sabia o que fazer. — Era só desespero, desalento e choque. E em 2015 foi uma época que tinha muita rebelião dentro desses centros socioeducativos, né? Então, além de tudo, você ficava ali do lado de fora sentada na calçada sem saber se lá dentro seu filho estava vivo ou morto.
E, numa dessas rebeliões, ela se aproximou muito de algumas mães e elas trocaram telefones e elas começaram a se organizar… E o coletivo Vozes de Mães surge nesse contexto. Mais tarde foi acrescentado aí o nome “Vozes de mães e familiares” que não eram só mães que estavam ali com seus filhos apreendidos. Depois a Alessandra percebeu que muitos desses jovens saíam ali do sistema e já caíam direto no sistema prisional. Então você saía da apreensão, desses centros socioeducativos, — Você saía muito pior do que você entrou, sem nenhum apoio e sem nenhuma orientação, sem ter feito nada para ser reinserido novamente na sociedade. — e você recaía no crime. Só que aí aquele jovem, ele já era maior de idade, e aí ele já entrava no sistema prisional.
Então, esse coletivo acabou organizado para dar suporte a mães e familiares tanto de jovens que estavam ali nos centros socioeducativos quanto para familiares de pessoas dentro do sistema prisional. Então o projeto foi ampliado, e foi aí que elas conheceram o Fundo Brasil… E o Fundo Brasil entrou com o suporte financeiro nessa luta delas, — Ali com um apoio financeiro. — Para que o trabalho fosse otimizado e elas conseguissem se organizar melhor. E aí eu vou deixar aqui para a Alessandra mesmo falar um pouco mais sobre esse trabalho do Vozes. Eu estou muito impressionada com o trabalho que esse coletivo desenvolve, é um trabalho muito difícil, mas é isso, né, gente? É passinho por passinho e sem parar…
[trilha]Déia Freitas: Agora a gente vai ouvir a Aline Andrade, que é superintendente adjunta do Fundo Brasil e, na sequência, ouviremos a incrível Alessandra Félix.
[trilha]Aline Andrade: Meu nome é Aline Andrade e eu sou do time do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Eu estou aqui hoje para falar do projeto do Vozes, que é como a gente chama o grupo carinhosamente por aqui, porque o nome é bem grandão, né? E que vocês conheceram através da história da Alessandra. O Fundo Brasil apoia projetos como o Vozes porque entende que a proteção e garantia de direitos de jovens dentro do sistema socioeducativo é fundamental para um país democrático e que respeita os direitos humanos. Infelizmente, nossa sociedade olha muito pouco para o sistema de medida socioeducativa e há poucos grupos tratando disso.
Hoje nós vivemos uma situação de super encarceramento de jovens do país, um excesso de uso de medidas de restrição de liberdade por parte do Judiciário brasileiro. Muitos jovens estão ali injustamente, poderiam estar cumprindo outras medidas e há muitas, mas muitas mesmo, violações de direitos desses adolescentes… E são coisas como a própria superlotação desses centros, maus tratos, tortura e até morte de adolescentes submetidos a essas medidas socioeducativas. Infelizmente, a gente sabe que quem mais sofre com isso são negros, pessoas em situação de rua, de periferias e de favelas…
O que nos chamou a atenção no projeto do Vozes, e quando eu digo “nos chamou”, eu estou falando do Comitê de Seleção, que é formado por especialistas de direitos humanos com diversidade racial, de gênero e regional e também pelo Conselho de Administração do Fundo Brasil, é que eles lutam para garantir o direito dos adolescentes privados de liberdade pensando em direito à saúde, à educação… Mas também olhando para o Estado brasileiro, para entender qual é o orçamento que o Estado volta para a política socioeducativa, né? Quem são os profissionais hoje que estão lidando, como é que se cuida desses jovens? E olha também e faz também uma campanha muito forte pelo direito à saúde, à educação…
E outra coisa que a gente acha importante é que o Vozes olha também para essas mães e para essas famílias, né? E as apoiam, formam politicamente, promovem espaços de diálogo, de aprendizado e também realizam programas de cuidado e autocuidado, sabe? Para a prevenção de suicídio… Apoiando as pessoas para que elas possam resistir a essa violência estatal, mas que também para que elas defendam direitos e para que outras famílias não passem pela mesma dor.
Alessandra Félix: Ser mãe solo de periferia é uma condição que é de mulheres negras, né? É algo que não me parece… Eu vivencio isso, eu sinto isso na pele… Eu vejo as pessoas, outras mulheres vivenciarem isso, porque é uma realidade muito perversa, mas é uma realidade que nos atravessa, como se fosse algo natural, né?
Então, criar um filho sozinha é como se… Existe a frase que a gente mata um leão por dia, né? Não é só um, a gente chegar a matar quantos forem preciso para poder dar conta dessa cria. Não é fácil. Aqui na cidade de Fortaleza vivemos hoje em uma condição de territórios faccionados, dominados por grupos armados… Então, até pra a gente trabalhar… E eu perdi o meu filho para a [cooptação] desses grupos… Foi por cooptação que eu perdi meu filho. A gente precisa trabalhar… Não temos condição de pagar uma pessoa para olhar, se não for a escola, é o espaço que a gente ainda consegue deixá-los, e contamos com a criação solidária de vizinhos, né? Que foi com quem eu contei por algum tempo.
Então, os desafios de criar um filho sozinha é isso, é você ter que trabalhar para custear desde a alimentação, a educação, a saúde… É preciso que se propicie o lazer, a cultura para esse menino… Eu sou mãe de um menino. E aí a gente precisa trabalhar, e eu também tinha a ousadia de tentar concluir minha faculdade, então, ele até os 9 ou 10, pela manhã eu trabalhava, então eu levava ele para a escola onde eu trabalhava, a escola particular que dá direito a professora que tem filho de uma bolsa, né?
À tarde eu era coordenadora e ele ficava na creche junto comigo. Vínhamos para casa às cinco horas da tarde, seis horas ia para a faculdade. E aí eu consegui fazer isso até os 10 anos dele, né? Após os dez ele já estava maior, já pedia muito para ficar brincando um pouco… E que a vizinha que tem esse olhar compartilhado ficaria dando uma olhada e ele entraria cedo, porque eu já estava cursando a faculdade, né? Então, aos 11 anos dele, eu ainda estava na faculdade, e eu precisava concluir o meu estudo… Porque foi uma determinação que eu escolhi, né?
E aí foi quando eu comecei a perder o controle, de chegar e ele já não estar em casa, e isso dificultou para mim, porque eu era sozinha, eu não tinha o pai dele para estar dando essa atenção e essa assistência e, talvez, se eu estivesse com o pai dele, eu também não estudaria. Enfim, eu sempre fico muito me questionando nisso assim, o que é ter essa companhia, né? O que é ter esse pai do lado? O que é isso? E se eu tivesse esse pai, quais seriam as minhas possibilidades, quais seriam os passos que eu poderia dar enquanto mulher, enquanto ter autonomia para algo…
Então, criar um filho sozinha é isso… O que eu pude possibilitar, eu possibilitei. O que eu não pude, eu também tentei fazer… Procurando dar o melhor, procurando ser a melhor mãe, procurando suprir todas as expectativas que ele tivesse, ou necessidades, né? Mas isso vai muito para além das nossas capacidades. Eu não posso dar um passo para além… Apesar que quando a gente é mãe, a gente dá passos, dá saltos, dá pulos… A gente faz tudo pelos nossos filhos. Mas eu confesso que criar um filho sozinha é um desafio constante, é algo que nos atravessa nas nossas vidas, é algo que nos adoece, nos envelhece, nos tira a nossa feminilidade…
Porque a gente vive em intenção de dar o melhor para os nossos filhos e, quando a gente procura dar o melhor para os nossos filhos, sempre são eles em primeiro lugar. Outras prioridades vêm e a gente sempre fica como quinto, décimo quinto, décimo sexto, vigésimo lugar, né? A gente não se olha como a gente poderia se olhar, se enxergar e se fazer presente nesse mundo, que não fosse ser só mãe.
Existiam as gangues, mas não mesmo, de fato, os grupos armados. Os grupos armados chegaram aqui em Fortaleza em 2015… E aí já foi essa perda do controle. Ele já estava crescendo, o entorno da minha rua sempre foi uma rua que sempre teve suas particularidades…. Como eu posso dizer, a sua pedagogia, porque toda rua tem pedagogia, né? E eu percebi que eu fui perdendo ele por conta mesmo dos grupinhos que já estavam. A criança quando ela é criada presa, ela tem muita curiosidade e ele sempre foi muito curioso, muito aventureiro, muito matreiro… E aí a gente acha que tem o controle, mas não tem.
Aos 14 ele já tinha uma certa autonomia de não estar na escola comigo o tempo todo, ele estudava pela manhã, à tarde ele vinha para casa e eu estava na escola, passava o dia inteiro na escola porque me possibilitava um salário melhor, e à noite ia para a faculdade. Então, praticamente, a gente só se via pela manhã ao sair de casa para ir para a escola, aí ele almoçava comigo muitas vezes ou eu vinha deixar o almoço dele e ele passava a tarde em casa… E à noite era isso, do videogame ou de estar na rua jogando bola com os meninos.
Então, aqui onde eu moro sempre teve um grande acesso a drogas, né? A quem vendia, quem usava… E aí os eventos começaram dessa maneira. Na escola também o meu primeiro episódio ao qual eu vivenciei com ele que foi ser mandada para o Conselho Tutelar por conta de indisciplina na sala de aula, porque ele se envolveu com a galera do fundão, e aí essa galera também dava muito trabalho, né? E aí foi onde foram os primeiros grupos ao qual ele estava… Meus problemas começaram mais na escola do que na rua.
Na rua eu tinha o olhar de uma vizinha que é minha comadre, que cria ele comigo desde pequeno, como eu também tive muito desse olhar para o filho dela. E é isso que a gente faz, as mulheres negras nas periferias, a gente cria os filhos umas das outras. Quando estamos em casa, se a gente vê algo de errado, a gente sinaliza…
E aí os meus maiores problemas começaram mesmo foi na escola, no espaço escolar, no espaço educacional… Onde não foi só o meu filho, era uma turma de meninos muito trabalhosos, ao qual, essa turma, quatro deles foram bater no Conselho Tutelar por conta disso. Eu fui mais porque a própria professora viu meu esforço, me conhecia, éramos colegas de profissão, e aí ela sinalizou que, no Conselho Tutelar, talvez, me orientassem alguma ajuda para ele e por eu ser essa mãe solo.
E aí começou daí… E após a ida ao Conselho Tutelar, começou todo meu calvário, né? Porque as coisas foram se afunilando, ele foi encontrando e foi vivenciando outras experiências mais pesadas, que foi o álcool… E aí começou a pedir a ir para festas, ele começou a conhecer meninos ao qual já tinha uma vivência bem pesada e que, de fato, é aquela busca errônea da juventude por status, por sucesso, por ser descolado… Eu percebi que ele começou muito por isso… E, para ser esse menino reconhecido, infelizmente, na época as gangues elas produziam isso, esse método de que para você entrar você precisa fazer algo. E aí começou por aí…
Foi quando começaram os pequenos furtos. Nós as mães somos as últimas a saber de algumas coisas… E aí veio a primeira apreensão, ao qual eles estavam em uma turma aos arredores da orla da praia aqui no Beira Mar, e era uma turma não sei se de seis, mas quatro deles ficaram de olhar a rua. Israel era um… Para ver se vinha alguém. E dois deles pegaram uma menina e puxaram a mochila dela para ver o que tinha de valor dentro, né? Foi um roubo, na verdade… Essa foi a primeira apreensão.
Esse perfil dele, que se desenhava ali, foi o primeiro ingresso dele dentro de um espaço de Socioeducação, porque aí desde que ele entrou, eu nunca mais reconheci meu filho. Ele passava a semana lá e voltava para dormir em casa, e ele relatava do medo, de como era… E eu cheguei a participar de algumas atividades, mas eu também percebia que aquilo ali ia muito mais dificultar a minha vida do que ajudar, por conta dos perfis violentos dos meninos, por conta de todas as questões sociais que atravessavam aqueles meninos… E essa foi a minha primeira experiência de uma medida de liberdade assistida, né?
E aí quando eu percebi que, de fato, aquilo ali não edificaria ele em nada, ele mesmo deixou de cumprir. Esse descumprimento fez com que ele ficasse no visor da [DCA], de qualquer problema… Já estava lá constando que ele tinha descumprido e, infelizmente, aí ele, de fato, foi cooptado para o tráfico, passou a vivenciar a rua… Eu não aceitava o uso na minha casa… E aí começamos assim a se desentender, ele optou ir pra rua e aí passou por abrigos, passou por albergue onde o Conselho Tutelar me chamava para ir buscar, visitar, olhar, saber o que era possível fazer e eu trazia para casa e existia sempre o conflito do nosso desentendimento…
Eu não queria aquilo. Mãe nenhuma tem manual de instrução para lidar com essas questões. 2013 e 14 foram idas e vindas nesses espaços, né? Em 2015 ele passa a ter a primeira medida no fechado, então aí quando eu entro que vejo tudo que ele está vivenciando, surge o grupo de mães assim. As mães entravam e saíam chorando porque tinham visto seus filhos espancados, e eu achava que era isso mesmo assim, era uma pedagogia do espaço… E aí a gente entrava e eles relatavam dos maus tratos, da alimentação… E eu não sabia o que fazer com aquilo, né? E, na época, eu estava nas minhas primeiras leituras, de fato, debruçada sobre o ECA.
Quando eu ia visitar, tinha sempre uma mãe, estava lá sempre questionando, ela sozinha questionando e eu sentada olhava… Várias mães sentadas no chão esperando… Porque em 2015 foi um momento de muitas rebeliões aqui no Ceará, muitas rebeliões dentro dos Centros Socioeducativos, e aí quando essas rebeliões aconteciam, o centro fechava, a polícia entrava, espancava os meninos e nós, as mães, não entrávamos. Muito motivada por essa mulher que estava lá nesses portões, cheguei nela, pedi ajuda, disse que ia estar ali com ela…
E aí começou assim… Teve uma rebelião ao qual os meninos foram transferidos porque o centro quebrou, inclusive, nesse dia, um guariteiro matou um menino… Eu estava na escola, fui chamada às pressas por conta que alguém viu na televisão. E aí eu voltei pra lá, a gente começou a trocar telefone, eu com essa mãe e outras mães pra gente dar notícia. Eu tive que voltar pra casa, porque não deixavam a gente entrar. Fizemos vigília, campana até abrirem os portões para a gente entrar, mas eu precisava voltar, porque eu era responsável por uma sala de aula…
E aí então o Vozes surge nesse contexto, nesse contexto de dor, de violência, de silenciamento, de negação de direitos dos nossos filhos, né? O Vozes surge porque, quando a gente entra, os meninos estavam sujos, fedidos… Os pés sujos, descalços… E eles estavam com muita sede, com muita fome… E o Vozes surge com essa perspectiva da garantia de direitos, né? A partir daí, de fato, surgem os portões dos centros, nessa perspectiva de lutar por isso, pela garantia de direitos… Pela água, pela comida e pela visita.
E por muitos meses foi essa luta, né? Aí depois que a gente conseguiu as garantias disso, a gente passou a pedir que cessassem os espancamentos… Que a equipe técnica atendesse esses meninos, que as salas de aula funcionassem. A gente começou a entender que era preciso reivindicar essas coisas…
É uma frase que sempre as mães falam, que todo menino quando é devolvido, a gente não reconhece os nossos filhos. De fato, a gente não reconhece… Por conta de não existir um compromisso do Estado para com essas personalidades juvenis. O adolescente infrator, ele entra com a infração de um furto e ele sai qualificado para cometer um grande assalto. É essa a visão que a gente tem e é contra isso que a gente luta… Por conta de todo o investimento que o Estado concede a esses espaços e o quanto esses espaços enganam a sociedade e deformam a vida dos nossos filhos.
Quando saem, eles saem desnorteados, com o apagamento social de suas vidas e da sua condição de juventude… E aí eles reincidem. Como eles já estão na maioridade, eles migram para o sistema prisional. E aí o coletivo Vozes começou com mães reivindicando o direito dos filhos, com o tempo vieram as familiares, as avós, tias, existiam as avós-mães, tias-mães, as companheiras, as irmãs… E aí o coletivo passou a se chamar “Vozes de Mães e Familiares do Sistema Socioeducativo”.
E temos três princípios, que é: acolher, fortalecer e trocar, né? Trocar as nossas experiências. Porque a gente percebeu o quanto era importante, porque não existe um compromisso do Estado, não existe um compromisso pensado pela Secretaria da Socioeducação, do acompanhamento para com a família… E é onde eles erram. Porque se eles inserissem a família dentro da política da Socioeducação, eles teriam outros resultados que não sejam esses que eles apresentam e que eles devolvem para a sociedade.
[trilha]Déia Freitas: Esta é a terceira história do Fundo Brasil aqui em parceria com o podcast. Eu volto na semana que vem com a última história da nossa campanha. Estou muito feliz, amando e vamo que vamo, vamo junto. Um beijo.
[vinheta] Alarme é um quadro do canal Não Inviabilize. [vinheta]