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título: jogo do bicho
data de publicação: 26/12/2022
quadro: amanhã é um novo dia
hashtag: #jogodobicho
personagens: deusa

TRANSCRIÇÃO

[vinheta] Especial de Ano Novo, um especial que é a cara do Não Inviabilize. [vinheta]


Déia Freitas: Oi, gente… Cheguei. Cheguei para o nosso Especial de Ano Novo. E a temática do nosso especial de Ano Novo esse ano é esperança. “Ah, mas como Déia? São histórias fofinhas de esperanças, histórias queridas?” Não sei… Você vai ter que ouvir aí até o final do Especial para saber se essa esperança vem de uma forma mais fofa ou de uma zona mais cinza… [risos] Você sabe onde você está, em que podcast você está. Então, o tema é esperança. E hoje eu começo esse Especial contando a história da Deusa. — Essa história tem um pouco mais de 50 anos, a Janice tem por volta dessa idade e é a história da mãe dela. — Quem me escreve é sua filha, Janice. Então vamos lá, vamos de história. 


[trilha]


Deusa nasceu em uma família humilde, uma família pobre, mas de pessoas muito conservadoras, religiosas e ela foi crescendo ali no meio daquela família e os vizinhos também, todo mundo ali na mesma vibe, né? E quando Deusa estava com 14 anos, ela conheceu um menino — da mesma idade dela — e eles flertaram um pouco… Era uma época que, para a família da Deusa ali, a realidade era você estudar mais ou menos ali até os seus 10, 11 anos e depois que você já sabia ler e escrever, já podia trabalhar. Então, tanto este garotinho quanto a Deusa, eles já ajudavam em casa, já faziam ali pequenos trabalhos… — A Deusa olhava crianças, esse rapaz já entregava ali umas encomendas da mercearia, enfim… — Os dois ali com 14 anos, se engraçaram, começaram ali um relacionamento bem juvenil. — Obviamente, era um relacionamento escondido, né? — E eles continuaram ali de namorico por alguns meses. Até que chegou o Natal… [música animada]


No Natal, a mãe da Deusa ela estava muito, assim, solícita… Fez as comidas que a Deusa gostava, a irmã da deusa, que sempre pegou muito no pé dela, uma irmã um pouco mais velha, estava super de boa, todo mundo muito acolhedor com a Deusa, o que não era normal naquela família. Eles passaram um excelente Natal… A Deusa disse que foi o melhor Natal que ela passou com a família dela, só que ela não sabia que aquele Natal já tinha uma intenção. [música de suspense] No dia seguinte, quando a Deusa acordou, no dia 26, a mãe dela, a irmã e o pai já estavam de pé e as coisas da Deusa estavam arrumadas… O que a família tinha descoberto é que Deusa estava grávida. Deusa vinha ali apertando uma barriga… — Como ela era muito magrinha, não aparecia tanto. — Mas Deusa vinha ali escondendo e apertando uma barriga que já estava quase nos seus 7 meses de gravidez. 


Ela tinha conversado com o garoto, o garoto já tinha dito que não ia assumir, já tinha largado a Deusa ali naquele final e agora a família estava sabendo de tudo e fez um Natal especial para Deusa, porque seria o último dia da Deusa naquela casa. — Deusa em pleno dia 26 de dezembro foi expulsa de casa pelos pais e pela irmã. — A Deusa na hora ficou sem chão, porque depois daquele Natal, que foi o Natal maravilhoso, ela tinha pensado em contar que estava grávida e, enfim, achou que ia tomar uma bronca, ficar de castigo… Mas Deusa nunca imaginou que ela fosse ser expulsa de casa… E foi o que aconteceu. Sem a menor piedade, sem nem tomar café da manhã, Deusa foi colocada no olho da rua. A única esperança da Deusa era ir para a casa de uma tia, que era em uma cidade vizinha. Só que ela não tinha dinheiro, ela não tinha nada… Então ela pediu carona na estrada… [efeito sonoro de carros passando] — Olha o perigo, mas era o único jeito. — E conseguiu chegar na cidade ali da tia. A carona que ela pegou deixou ela ali na estrada mesmo e ela andou até a casa da tia. [efeito sonoro de campainha tocando]


A tia recebeu a Deusa muito a contragosto, mas recebeu. Então era ali que a Deusa ia ficar até ter a Janice, até ter o seu bebezinho. Agora que Deusa não disfarçava mais a barriga, dava pra perceber que era ali uma garota adolescente grávida. E, na casa da tia rolou aquele burburinho, a vizinhança e nã nã nã e, quando deu dia 30 ali, no meio da tarde, a tia mais uma vez arrumou as coisas da Deusa… A primeira vez tinha sido a mãe, agora a tia arrumava as coisas da Deusa e colocou a Deusa na rua. Disse que não tinha como a Deusa ficar lá porque ela tinha filhas mulheres e que todas iam ficar mal faladas e que a fama já estava correndo, enfim, e que para não contaminar ali a família da tia, a Deusa não podia ficar lá. No dia 30 de dezembro ali, quase no final da tarde, Deusa foi colocada na rua mais uma vez. Agora, Deusa não tinha realmente pra onde ir… Não conhecia mais ninguém além dessa tia, estava em outra cidade… — Talvez pedir carona e voltar pra casa? Mas ela já tinha sido ameaçada pelo pai se ela voltasse… A mãe também foi muito dura, então não era uma opção voltar para casa. —


E aí ela ali sem ter pra onde ir sentou numa praça e chorou… Deusa chorou tanto que ela se recostou ali naquele banco de praça e dormiu. Quando foi mais ou menos oito horas da noite, Deusa acordou assustada porque tinha alguém cutucando ela… E era o padre. — Ela estava numa praça do lado de uma igreja. — E, quando ela viu o padre, deu uma esperança na Deusa. — Porque quando você vê um religioso assim, você fala: “poxa, vai me dar uma direção, vai me acolher, sei lá”. — Mas o padre estava cutucando a Deusa pra ela sair do banco da praça, porque ali não era o lugar de dormir. — Sim, o padre… — Já estava escuro, né? Já era noite, a Deusa rodou mais um pouco ali pela cidade e achou um cantinho coberto num comércio que estava fechado e ali deitou e dormiu. — Sozinha, grávida de sete meses, assustada, com frio, com fome e sem esperança de mais nada. —


Foi uma noite muito dura, onde a Deusa se sentiu muito sozinha, com medo e sem saber o que ia acontecer no dia seguinte com ela. Quando foi seis horas da manhã, Deusa ainda estava dormindo ali, — naquele cantinho daquele comércio que ela nem sabia o que era, só que era um lugar coberto, né? Pelo menos ela não pegaria o sereno da noite. — Deusa foi acordada por um casal de idosos. — Quem era esse casal de idosos? — Era o seu Nonato e a sua esposa, Dona Deusanir. Dona Deusanir cutucou ali a Deusa e falou: “Filha, você grávida dormindo na rua? O que aconteceu?”. E aí, Deusa, uma menina… 14 anos é uma menina… Começou a contar ali tudo o que tinha acontecido, começou a chorar, e aí dona Deusanir parou e falou: “Como é que você chama?”, ela falou: “Deusa”, aí dona Deusanir falou: “Mentira, seu nome é Deusa? O meu é Deusanir”. E aí a dona Deusanir começou a falar do nome dela, de onde veio o nome dela e foi levantando a Deusa do chão. 

Ela foi levantando a Deusa do chão enquanto o seu Nonato abria ali aquela porta de enrolar, sabe? E aí abriu a porta e a Deusa viu que ela estava… Ela tinha dormido na porta de um bar e esse bar era do casal, Dona Deusanir e do seu marido, Nonato. E aí dona Deusanir já foi levando a Deusa pra dentro, já foi ligando as coisas ali do bar pra fazer um café [efeito sonoro de fogão elétrico sendo acendido] porque logo as pessoas iam chegando, né? E o seu Nonato pegou um balcãozinho branco móvel, assim um movelzinho e botou na porta do bar e Deusa sabia o que era aquele balcãozinho, então logo ela percebeu que seu Nonato fazia ali o jogo do bicho. E ela ali sem responder nada, porque Dona Deusanir não parava de contar da vida dela, do nome dela e do seu Nonato e nã nã nã… E já foi, já fez um café, já esquentou um leite… [efeito sonoro de líquido sendo despejado] Eles tinham chegado com fardos de pão e já fez um pãozinho francês na chapa pra Deusa e deu pra ela comer. E ali eles ficaram os três conversando, os clientes foram chegando, né?


A Deusa tomou café e chegou uma hora que uma cliente chegou lá no bar pra pedir alguma coisa e perguntou pra dona Deusanir quem era. “Quem é essa moça?”. [efeito sonoro de tensão] Na hora a Deusa assustou porque ela falou: “Bom, agora agora eles vão falar pra eu ir embora, né? Porque quem sou eu, né? Estou aqui no bar… Já era, sei lá, umas dez e pouco da manhã, sem fazer nada e sentada aqui, né?”. E aí dona Deusanir virou pra essa senhora que tinha entrado lá no bar e falou: “Ah, essa aqui é minha sobrinha que veio de Minas, vai ficar aqui com a gente”. [voz embargada] E eu já tô chorando… E aí a Deusa já começou a chorar porque “como assim “vai ficar aqui com a gente a sobrinha de Minas?”, e aí ela entendeu o que é a dona Deusanir tava fazendo ali, né? Seu Nonato já estava rindo, olhando para a esposa… E aí dona Deusanir falou ainda pra mulher: “Cê vê? Ela deu um tropeço aí na vida, mas a vida é assim mesmo. A vida é assim mesmo, vida que segue… Vamos circulando e nã nã nã” [risos] e já botou a véinha ali e a outra que chegou pra correr. 


E aí, chorando, a Deusa falou: “Mas eu não sou sua sobrinha” e ela falou: “Ué, você tem pra onde ir?” e a Deusa só chacoalhou a cabeça assim que não, né? “Então pronto, então agora você tem. Você não tinha para onde ir e agora você tem, você vai ficar aqui”. [risos] E aí a Deusa, no dia 31 de dezembro, conheceu [voz embargada] quem seria sua nova família até o final da vida deles. Depois daquele dia no bar, a Deusa foi levada para casa do casal, o seu Nonato e a dona Deusanir. Eles não tinham tido filhos e a Deusa passou ali a ser a filha deles. Deusa teve Janice, Janice foi acolhida ali também pela família e ela morou com essa família durante 23 anos, até que dona Deusanir faleceu e, quatro meses depois, seu Nonato faleceu. — Os dois já bem velhinhos… — Deusa cuidou deles também até o final ali. E aí foi a família que apareceu pra Deusa ali naquele dia 31 de dezembro… Onde Deusa não tinha nenhuma esperança, não sabia o que fazer, não sabia pra onde ir e foi dormir na porta daquele bar, sem saber que no dia seguinte, o lugar que ela tinha escolhido pra dormir ia mudar a vida dela inteira.


Dona Deusanir e seu Nonato eles eram loucos por jogo do bicho, eles faziam as apostas no bar… — Eu sei que é uma contravenção, é crime, mas a gente está falando de algo aí que ocorreu há 50 anos… Então, né? [risos] Tudo bem. Pra mim tudo bem, espero que pra vocês também. — E a Deusa aprendeu também, né? Sabia tudo de jogo do bicho, sobre milhar, jogar na cabeça, dezena, enfim…. [risos] Janice cresceu reconhecendo Dona Deusanir e seu Nonato como seus avós, né? E Deusa nunca mais procurou a família dela que tinha colocado ela pra fora. Janice também nunca teve o interesse de procurar. E a família da Deusa e da Janice sempre foi aí Deusanir e Nonato depois que eles se conheceram ali. E a cena que fica na cabeça da Deusa daquele ano novo foi dela chegando na casa e a dona Deusanir já dando uma toalha pra ela ir tomar um banho e tal… E depois eles fizeram uma comida e jantaram, abriram ali um espumantezinho e ficaram olhando os fogos assim, né? Era uma cidade pequena que ia ter fogos ali atrás daquela igreja onde o padre foi um cretino e eles ficaram olhando ali de longe os fogos… E a Deusa olhando pra aquele casal de idosos que acolheu aquela garota grávida — de sete meses — sem fazer nenhuma pergunta, nenhum julgamento… Só mesmo amor e esperança.


[trilha]


Carol Festucci: Oi, gente… Aqui é a personal Carol Festucci, a professora de ginástica da Déia e eu estou aqui hoje para desejar um feliz ano novo a todos os ouvintes do podcast. Desejo muito amor, muita saúde e muito corpo em movimento no próximo ano. Eu quero ver todo mundo fazendo exercício, hein? Beijo.

[trilha]

Déia Freitas: Analisando melhor as histórias que eu escolhi para o Ano Novo, talvez a gente não fale só de esperança, mas também de solidão. Eu acho que é uma época que a gente se sente muito sozinho e, às vezes, se sente sem ter pra onde correr e mesmo rodeado de pessoas, a gente se sente só. Então, o maior momento de solidão da Deusa no dia seguinte ela teve uma ponta de esperança. Que começou ali naquele pão na chapa que dona Deusanir serviu pra ela e culminou aí numa aliança de amor de 23 anos, até que o casal de idosos falecesse. Então, essa é a nossa primeira história de Ano Novo. Teremos mais quatro pela frente, espero que vocês gostem. Eu espero que se você esteja aí num momento desses, sem uma luz, sem esperança, amanhã é um novo dia. — É sempre um novo dia. — Então é isso, gente, a gente se vê amanhã. Um beijo.

[vinheta] Especial de Final de Ano é mais um quadro do canal Não Inviabilize [vinheta]